23 de julho de 2008

Se não quer sentir o horrível peso do Tempo
Que pesa sobre os seus ombros e o esmaga,
Embriague-se sempre.

Com quê?
Com vinho, poesia ou virtude.
Com o que quiseres.
Mas embriague-se.

-baudelaire




Não penso nele há muito tempo. Talvez por isso ele despenque sobre mim com tamanha brutalidade. O fato é que o tempo vem comigo para onde eu vou, não consigo driblá-lo. Sacana. E mesmo para me queixar dele, devo recorrer às cinco letras que o formam. Sempre exibindo seus dentes largos de satisfação, o tempo senta-se a me olhar enquanto me arrasta por suas vontades. Mas não o culpo, é assim desde o seu início, e é assim com todas as pessoas. Já o difamaram por todos os cantos. Souberam dignar-lhe ingratidão quando, ligeiro, acelerava os seus ponteiros. Oportunava-lhe o ofício: se retardava o passo para agradar a quem lamentava o seu afã, alimentava a tristeza dos que, mergulhados em alguma infelicidade, cobiçavam apenas a passagem das horas. Acontece que o tempo, ingênuo por tantas vezes, percebeu que deveria apenas continuar, sem medir as consequências. Talvez aí tenha nascido a sua arrogânica: não por gostar de ostentar tanta honra, mas por saber o seu lugar no mundo. O tempo passou a bastar-se. Desliza em seus passos sorrateiros por onde quer direcionar os trilhos do mundo, e nada anula o seu passeio. Determina escolhas, decide direções, desbota as cores, amortece as dores. Edifica sensações, perpetua sentimentos, possibilita esquecimentos. Apaga vanguardas, germina inovações, esmigalha o que fica pra trás. Condiciona os sabores, a direção dos ventos e a duração dos amores. Inspira, mas remete a chichês: o tempo não pára. É por causa dele que existe a evolução e o retardamento; o aprimoramento e o requinte; o declínio, a escassez, a falência múltipla dos órgãos; o ir e a possibilidade de voltar; o espaço, a probabilidade: a estúpida alternativa de deixarmos pra depois. Cada vez mais, tem as faces coradas quando citam-lhe o nome por aí. Artigo de luxo da atualidade, ajuda, inconscientemente, a construir os faustos de um mundo que até para respirar, o faz apressado. O tempo é irritantemente contínuo e misteriosamente incerto. Já lhe apontaram o dedo na cara aqueles que criticam a sua inexorabilidade. Outros, não sem nenhuma ironia, chamam-lhe “compositor de destinos”, “tambor de todos os ritmos”. Alguns, mais sutis, tratam-no com o intimismo de “mano velho”. Bobagem. Ele não procura companhia, quer apenas ser tempo. Segue decidido, a passos firmes, sem perceber as distorções que faz – ou deixa de fazer. Mal sabe que, por diversas vezes, o seu avanço ininterrupto e fugaz não impediu que permanecessem intactos alguns aspectos da humanidade; não somente os cantos insólitos, como também os mais óbvios e gritantes: todos imunes às mutações que o tempo é capacitado a fazer. O mundo não se decide em relação ao tempo, observa o seu próprio viravoltear e consegue sair ileso às suas manifestações. Daí vem o porquê de o que é moderno ou avançado nem sempre estar aliado às artimanhas temporais. Cheio de manha, esse tempo. Agora mesmo ele ri por mim um riso tímido e quieto por ter passado impunemente enquanto me subtraía horas irreversíveis, fazendo-me pensar nele. Sua definição é o retrato exato da complexidade. Mas talvez seja só porque eu há muito não pensava nele. E talvez também por isso, ele despenque sobre mim com tamanha brutalidade, rindo um riso tímido e quieto.

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