30 de setembro de 2008

Quanto pesa uma interrogação

Mas naquele dia ela pensava na leveza. Pura e simples joie de vivre.
Em como as pequenas pedras que emolduravam o mar eram metodicamente pesadas para contrastarem com a leveza da água quando nela fazem aquele barulhinho bom de escutar. As pessoas que dividiam aquele espaço com ela, ocupadas em viver aquele sol e aquele verão fora de época, não compartilhavam dos mesmos pensamentos, e o que acontecia era que toda aquela angústia cabia perfeitamente em todo aquele espaço, ainda que a pequenice de sua cabeça não lhe permitisse guardar muito mais que alguns tormentos. Deitada na areia quente, não conseguia dormir. As pessoas continuavam a rir e conversar, a escandalizar e a rir, a fumar e a rir, a se movimentar rindo, e a rir tanto, que pareciam chorar.Ela ignorava, queria dar vazão àquelas dúvidas, continuava a pensar na leveza. Não conseguia dormir. Os olhos fechados e a mente aberta. A boca se permitindo inundar daquele ar e de todo aquele mormaço; a preguiça que aquela calmaria proporcionava. Ela pensava em como o verão podia ser leve; as roupas, o tempo que se estende, as obrigações que ficam para depois da cerveja, que ficam para depois do almoço, que ficam para depois daquela noite mal dormida e pra depois daquele dia em que todo mundo sente sono. Enquanto grudava seu corpo na quentura da areia, pensava em tudo que existe como um ciclo; pensou tanto que, no final, o peso das pedras em frente ao mar deixou de importar, já fazia algum sentido. Mas, principalmente, ela própria se sentia diferente, um tanto mais aliviada e menos insignificante que no início daquele temporal sazonal de sensações. Apenas diferente: mais leve, afinal. A vida é feita para se morrer dela.

16 de setembro de 2008

Pra dançar diferente

Tudo o que se diga sobre o primeiro álbum solo de Marcelo Camelo são apenas devaneios e tentativas de definição dos quais o próprio disco quer se esquivar. Em Sou, Camelo está sozinho, mas é impossível deixar de perceber toda a bagagem hermanística que traz nas costas. Na verdade, o que se percebia já há algum tempo era uma gradação do coletivo para o individual, culminando na transformação da banda em muitos e incríveis trabalhos-solo. Entre a despretensão e a simplicidade, a beleza. O disco deixa o refinamento musical de lado para se entregar ao sossego das cordas, algo que Camelo deixava que se dispersasse nos Los Hermanos. O que não cabia lá, cabe aqui. Passeando por cenários musicais completamente distintos, Marcelo se agarra ao melhor de cada estilo para modelar uma harmoniosa colagem que dispensa a mínima classificação. Hultmold, Dominguinhos, Mallu Magalhães e o piano suave de Clara Sverner pontuam a singularidade – e um tanto do estranhamento - de Sou. Cabe o samba quase-frevo deliciosamente tropicalista de Menina Bordada; a poesia musicada de Téo e a Gaivota; a influência folk que incita as azucrinantes e inevitáveis palminhas duplas de Janta; o auge de pulsação que o álbum alcança de Mais Tarde; a latinidade, o batuque e o maracatu em potencial de Vida Doce (!); os assovios mansos que compõem as frases sonoras de Doce Solidão e versões instrumentais das canções mais dormentes do álbum, Passeando e Saudade – em que quase se desconfia que o disco realmente dormiu. Além da inocência de Copacabana permitindo um carnaval fora de época e da releitura das já conhecidas Liberdade e Santa Chuva. Mergulhamos na recorrência das palavras jogadas nas músicas, que se espalham incitando a certeza de que não estão onde estão por um acaso. Solidão, doçura, saudade. As palavras nos avisam do novo Camelo, que não deixa de ser o de sempre, por carregar a mesma calmaria da voz e por solicitar de quem ouve a mesma (gostosa) paciência requisitada em qualquer um dos discos dos Los Hermanos. Por um lado, é a exibição completamente nua do estilo de Marcelo Camelo, que, como de costume, não aspira à adoração universal. Por outro lado, mais contextualizado, é uma espécie de anunciação de que algo acabou, mesmo. Sou manda avisar que Marcelo encontrou o espaço para se esticar. O espaço que precisava para ser. Um canto para se reduzir a pés descalços, cabelo desarrumado e camiseta velha e deixar que os dedos suavemente seduzam o violão, sem roubar o espaço dos muitos instrumentos que constroem o disco e dos barulhinhos de fundo conservados das gravações originais. Em Sou, as canções estão de pijamas, mas perfeitamente adequadas para sair e dançar. O álbum tem mil rostos, que vão se mostrando calmamente a cada pormenor percebido, a cada aumentadinha no volume, a cada acesso de paciência. Sou parece às vezes ter sido feito às pressas, ainda que com o maior sossego. Parecer ter sido entregue a mais minuciosa das mãos – prova disso é a brincadeira concretista de Rodrigo Linhares na arte da capa, que se reflete sem disfarce em todas as músicas – e ao mesmo tempo, não deixa de ter toda a espontaneidade. O clima é tanto de “senta aqui, que hoje eu quero lhe falar” que o disco soa o tempo todo como uma brincadeira. Não por lhe faltar seriedade, mas pela suavidade com que Marcelo Camelo maneja as palavras: carinho para os ouvidos. Entre antíteses e trocadilhos sacanas que são melhores no som do que na letra, alguns lapsos de explicação: “posso estar só, mas sou de todo mundo”. É tanta tranqüilidade que a coisa toda mais parece uma roda de violão no meio de um boteco qualquer que, sem perder o refinamento, responde sutilmente de onde, afinal, é que vem a calma.

4 de setembro de 2008

Recordar: Do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração

a pequena morte

"Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem, não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por encontrar-nos e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem, mas grande, muito haverá de ser, se ao nos matar nos nasce."

a linguagem da arte

"Chinolope vendia jornais e engraxava sapatos em Havana. Para deixar de ser pobre, foi-se embora para Nova York. Lá, alguém deu de presente a ele uma máquina de fotografia. Chinolope nunca tinha segurado uma câmera nas mãos, mas disseram a ele que era fácil. - Você olha por aqui e aperta ali. E ele começou a andar pelas ruas. Tinha andado pouco quando escutou tiros e se meteu num barbeiro e levantou a câmera e olhou por aqui e apertou ali. Na barbearia tinham baleado o gângster Joe Anastasia, que estava fazendo a barba, e aquela foi a primeira foto da vida profissional de Chinolope. Pagaram uma fortuna por ela. A foto era uma façanha. Chinolope tinha conseguido fotografar a morte. A morte estava ali: não no morto, nem no matador. A morte estava na cara do barbeiro que a viu."

a noite

"Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, pediria a ela que fosse embora, mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta. Arranque-me, senhora, as roupas e as dúvidas. Dispa-me. Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo".

Os contos acima foram extraídos do Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano. Foi a última vez em que eu me apaixonei.

.abraço a.bra.ço sm (de abraçar) 1 Ato de abraçar; amplexo. 2 Bot Cirro, gavinha. 3 Arquit Entrelaçamento de folhagem lavrada em volta de uma coluna. 4 Aderência, compressão, fusão.

tão Zé

"Danç-eh-sá Ao Vivo" - o álbum que celebra o fim da canção como possibilidade artística.

Ícone das invencionices musicais, Tom Zé nos ensina com quantas rugas se faz uma vontade de inovar. O disco é uma continuação de “Dança dos herdeiros do sacrifício”, de 2006. Na releitura - se é que chamá-lo assim não é reduzi-lo a muito menos do que ele é - presenciamos a transformação das antigas canções e a valorização da música despida de letras. É a nudez das músicas bem comportadas. A partir das raízes brasileiras na cultura africana, o nosso baiano de Irará constrói a possibilidade de uma canção ser feita apenas com sons. Por isso, neste disco, o lirismo dá espaço para barulhinhos, onomatopéias e interjeições. Mas sem deixar que uma música assim tão sintética seja tomada pela plasticidade. Aqui, quem guia a cadência são os tambores, percussões e os neologismos embrulhados na voz firme de Tom Zé. Como ele mesmo diz, "é a falência do dicionário, a esculhambação dos verbetes". A idéia surgiu a partir de uma pesquisa que a MTV fez em 2005, que apontava a obsessão dos jovens pelo hedonismo, consumismo e a música eletrônica. Por isso, o álbum nasce como um convite para um diálogo. É uma rememorização constante de onde viemos. A afirmação invariável de que somos uma mistura de povos. E mesmo que Tom Zé não seja um artista engajado (ô palavrinha feia) ele quer mostrar para os jovens a responsabilidade que eles têm num país de origens tão lutadoras. Cada título do CD tem o nome de uma revolta que conta a história dos escravos e antigos povos revolucionários brasileiros, como Revolta Queto-Xambá ou Revolta Malê. É uma tentativa de narrar a História do Brasil apenas com sons. Tom Zé, ao mesmo tempo prosaico e inventivo, evoca o astronauta libertário que criou em “2001” para percorrer o panorama da música digital influenciada pela tecnologia. Ele invade, então, o território que lhe era estranho: a internet. Quando perguntam sobre tal experiência, ele responde: “sinto-me como se saísse da Idade Média diretamente para uma estação orbital, como no filme de Kubrick". Atento, ele conhece os efeitos da passagem do tempo na música. Se o disco celebra o fim da canção, Tom Zé mostra que todo fim significa a possibilidade de um outro começo. Assim, a canção, tal como nos foi apresentada até então, acaba, mas se reinventa como sinal dos novos tempos. As letras das suas canções têm o começo geralmente pautado na poesia concreta. Aqui, no entanto, o cantor anula o intermédio das palavras e vai direto para o concretismo sonoro. Uma ilustração disso é a faixa Triu-Trii, que pelo excesso de similaridades sonoras, parece mais um exercício de fonoaudiologia. É a habilidade com os intrumentos convencionais e o engenho para tirar som de liquidificadores, máquinas de escrever, rádios, enceradeiras e garrafas que fazem de Tom Zé o louco mais sensato da música brasileira. Mesmo que para muitos este álbum pareça somente o barulho gritante de um velho decrépito, as onomatopéias de Tom Zé ultrapassam a etimologia medíocre para dizer muito mais que as palavras. Cada uma das 8 faixas do CD são divididas em três momentos: “viver”, “sofrer” e “revoltar”, uma referência ao Eclesiastes bíblico, espécie de compreensão do ritmo da existência. Tom Zé mostra que toda mudança é dialética: uma coisa deve sumir para que outra apareça, daí a importância de entendermos todos os tempos. Além disso, o próprio título do disco não economiza ironia para mostrar que para bom entendedor, mei pala bas. Esse disco chuta a repetição e aniquila o mais do mesmo. É Tom Zé, novamente novo, como sempre.

(matéria para Revista Ponto e Vírgula da Web-Rádio Virtual/Unesp, programa Sintonia)