14 de junho de 2009

Estar debaixo de um edredon

Meu "capítulo imaginário" do livro "O primeiro gole da cerveja e outros minúsculos prazeres", de Philippe Delerm
No momento exato em que nos embolotamos debaixo de um edredon, sabemos que nenhum outro lugar seria tão receptivo a nossa necessidade de calor: qualquer ambiente que não a cama, nesse único instante, torna-se inóspito. O primeiro ato é o de chacoalhar: avidamente nos esprememos em nós mesmos na busca da melhor posição, e quando a achamos, percebemos que ainda está frio. O edredon jogado sobre a cama não basta para que ela esqueça os momentos que passou sozinha, sob efeito dos ventos lancinantes que entravam impunes pela janela. Por isso, a cama demora a sensibilizar-se com o nosso pequeno drama, e leva um tempo até que saiba ler nas entrelinhas dos nossos lábios trêmulos a urgência de calor. Viramos, reviramos e esfregamos o corpo naquela superfície até então inabitada, até que a temperatura se entregue, desarmada, ao poder do atrito: encontramos, enfim, algum alento. É aí que o edredon pode exibir, triunfal, toda a sua eficiência. Além disso, por ser versátil, ele se permite levar até o sofá e até mesmo conviver em harmonia com a pipoca que inevitavelmente cairá sobre ele. Edredons são oásis de calmaria e serenidade que se opõem ao caos, ao frio, ao vento e às grandes tempestades: tudo isso se anula debaixo de um edredon, e todas as coisas adquirem de repente uma calma inexplicável. Estar debaixo de um edredon é contagiante, banaliza suficientemente a vida para que estar ali se revista de uma importância que não conhecerão nem mesmo as coisas mais importantes. Estar ali é simples, como deve ser tudo aquilo que insiste em se sujar de complexidade. Diferente dos cobertores e mantas, ele é conciso, objetivo, sensato. Seu poder não depende nem de pêlos, nem de franjas: o edredon é apenas um amontoado de náilon e algodão recheado de algum volume espumoso e acolchoado no intuito único de consolar um corpo gelado. Não provoca espirros, alergias, coceiras ou rinite aguda: apenas conforto. É, como a música, “calor que provoca arrepio”.Mas, inexplicavelmente, não é nesse espaço de doçura candente que as pessoas passam o maior tempo. Bares, restaurantes, botecos e outros impiedosos ambientes ao ar livre descaradamente roubam a presença das pessoas, apenas porque é nesses meios que se exerce a sociabilidade. O edredon, porém, sabe de seu valor,e apenas espera enquanto aquele que o renegou está em qualquer lugar batendo os dentes, esfregando as mãos e soprando nelas pequenos jatos de ar quente para aliviar o frio, dando pulinhos de agonia gélida enquanto procura as chaves do portão de casa. Sempre muito solícito, ele recebe com gentileza em seus braços o filho pródigo: mais uma vez se inicia o movimento pela misericórdia da cama fria, enquanto o edredon jaz tranqüilo sobre aquele corpo desamparado. A possibilidade de estar debaixo de um edredon é como um cais a que se pode continuamente retornar: é sempre nele que ancoramos nossos corpos naqueles fugazes instantes em que só um abraço quente pode resolver nossas pequenas angústias.

1 de junho de 2009

da série "Pormenores urbanos".

Murais sempre me surpreendem, ainda que só olhe para eles como quem quer descansar os olhos da função maçante de olhar apenas para frente: a velha tirania do “olhe para frente de cabeça erguida”. Olho para o lado apenas, e encontro um mundo de possibilidades a me tentarem. Um mural, qualquer que seja, é uma grande via de sedução com conotação quase sexual. Diferentes papéis, fontes e cores se estapeiam por um minuto do olhar dos transeuntes, numa luta que, bem sabemos, só será ganha quando alguém se render aos encantos de algum aviso e parar para analisá-lo longamente. Os cartazes grifados a cores gritantes, os post-it desperdiçados à exaustão, a disputa muda pelo mais atrativo comunicado, pelo canto superior esquerdo, pela cola invencível ou por uma taxinha minimamente eficaz. Os murais são dóceis, aceitam qualquer coisa que se queira colocar. O pedido misericordioso de uma mãe que perdeu o filho, um aviso de liquidação de móveis velhos, a mudança de data do próximo encontro dos Alcoólicos Anônimos, profecias sobre a volta de Jesus Cristo e até mesmo o aviso de que, cordialmente e em letras garrafais, “troca-se um fogão velho por uma bola de capotão” (mural na moradia da Unicamp, 2006).