18 de dezembro de 2008

Eu cronico
Tu cronicas Ele crônica (III) O chiclete passeava inquieto entre a língua e o céu da boca, enquanto ela imaginava o que se tornaria aquela noite. O céu acinzentado servindo de teto à avenida iluminada, suja e mal frequentada em que ela se sentia apenas mais uma. Por ali, Catarinas não havia muitas, quanto mais magras, frágeis e mortiças como ela – e logo ela voltava a se sentir especial. Não bastasse a triste constatação da labuta a cumprir, ainda chovia mansamente algumas gotas tímidas, na proporção de um espirro do céu. Impaciente, ela pisava violentamente o asfalto, que ficava marcado a cada alfinetada do seu salto fino; ela esmagava o chão como se soubesse que ele, como muitos que encontraria noite adentro, não se importaria com a sujeição. Aproximou-se da calçada roída de umidade o primeiro carro da noite enquanto a avenida ia se aquietando. Quanto? "Os homens se interessam por números por não saberem lidar com a abstração" - respondia, célebre, lançando mão de toda a sua habilidade vocabular, enquanto sucumbia aos olhares daquele que seria o primeiro cliente da noite. Quase sempre era ignorada em suas falas, que eram ofuscadas pela beleza do seu corpo bem-formado e pelo fato de que, naquele meio, palavras eram apenas números: preço, quantidade, horário, duração. Mesmo assim, fazia questão de exibir o que sabia, ostentando sua bagagem cultural como um troféu. Todo o conteúdo literário dos livros que ela devorava se soltavam como num cuspe: natural e involuntário. Passou da calçada para o carro com a rapidez de quem queria acabar logo com aquilo, mas com a elegância de um membro da nobreza. No caminho, saboreava seus pensamentos enquanto fingia não ouvir as asperezas que vinham do lado do motorista. Pensava em quantos livros poderiam ser seus depois de vencida aquela noite. Todos novinhos, capa dura, cheiro sedutor, edições raríssimas, vindas de muito longe só para satisfazer o que nela havia se tornado um vício. Já no quarto – um ambiente circunférico, com cortinas de veludo, todo revestido de espelhos e de um mau gosto sem igual – ela lamentava o fato de que certamente o idealizador daquele lugar nunca havia ouvido falar do romantismo contido na simplicidade de um cenário bucólico. Já estava sendo esmagada por movimentos bruscos e sem nenhuma criatividade, quando começou a pensar em como as pessoas poderiam achar paradoxal uma moça de fino trato, feito ela, dar-se a essas baixezas da vida; era a primeira vez que lhe ocorria tal pensamento, ela não se importava com as pessoas e seus achismos. Ela, uma prostituta – demi mondeine, preferia – muito letrada, preenchia com livros o que lhe faltava de pudor. Conhecia bem os altos preços de seus objetos de desejo, e também conhecia o pouco talento que tinha para se prestar a outro serviço. O fato é que já estava nessa vida quando experimentou os livros, passar a dedicá-la ao novo prazer descoberto não seria difícil. Quase se perdeu nos devaneios – oh!, exclamou assustada - às vezes, o fingimento era penoso. Trocou de expressão sem esforço, passando num segundo do tédio à excitação. Fingiu um ou dois gemidos amarelos e, já em pé, na janela, acendeu um cigarro. Tinha os cabelos arregalados e o olhar despenteado: estava uma bagunça, por dentro e por fora, mas se encostou à janela enquanto o homem retornava de seu quase-transe. Dava sempre esse tempo para o fechamento dos negócios, os cinco minutos que pareciam durar uma vida. Esboçou um sorriso mal feito e vestiu-se com a pressa de quem está sob ameaça. Contando as notas recebidas, ela descia a rua já sem precisar carregar aquele semblante triste de antes, concentrando seu pensamento: a mais nova tradução de Baudelaire, com a qual já flertava há algum tempo, poderia ser dela. Caminhando a passos largos, logo chegou onde queria. Entrou na livraria mais cara da cidade: recostada à esquina de um bairro aparentemente simples, a construção ostentava grande requinte arquitetônico; Catarina entrou por uma comprida porta de madeira, com penduricalhos de ouro velho, sem conseguir controlar o rosto corado e o coração acelerado. Correu para as prateleiras e namorou longamente aquela imensa quantidade de raridades. Num minuto, já somava em suas mãos o equivalente ao conquistado no quarto das cortinas de veludo e mau gosto sem igual, mas nem percebeu, estava extasiada. Após longas horas de flerte contínuo, deixou a livraria como quem deixa um amigo querido, carregando um pacote pesadíssimo cujo conteúdo incitava arrepios de curiosidade. Gostava principalmente de poemas, e orgulhava-se por ter sido iniciada no gênero por um brasileiro dotado de ares de bom moço: Manuel Bandeira; conheceu-o numa feira de livros no Rio de Janeiro, logo após rodear a estante dos estrangeiros e perceber que havia enjoado da grande maioria; era como se não falasse a língua daqueles que se comunicavam com expressões. Somente depois de instituída sua intimidade com o gênero, é que aprendeu a apreciá-los. Bom vivant, era o que ela se sentia, mesmo sabendo que não era. Voltou para casa. Novo cigarro, longo banho, cama. Encostou a cabeça no travesseiro, que parecia não dar conta daquele peso que sentia, e abriu as páginas de uma de suas aquisições. Uma, duas, seis, vinte, cinquenta-e-sete: as páginas viravam sem que o tempo tivesse importância. O enredo, os personagens, a velocidade dos acontecimentos: tudo a envolvia completamente. E assim se passava. Prostituía-se pelos livros até que, de uma maneira muito estranha, os livros passaram a servir à prostituição. Com tempo, vida e obrigação passaram a falar uma só língua. Não conseguiria frear a segunda, porque dela dependia a primeira. Os livros vinham do dinheiro fácil das noites, deles vinham as muitas histórias devoradas à exaustão, delas, o desejo de sacudir o mundo, imitar a ficção, criar enredos e tornar-se ela própria personagem e, disto tudo, a certeza de que o outro dia poderia ser o que ela quisesse (com isso, ela lembrava da velha história de que cada dia é como uma pipoca quentinha em que o sal é por conta). Era mais ou menos um movimento de contradição tentando se fazer reciprocidade. Isso porque Catarina buscava na vida comum as fantasias e os acontecimentos extraordinários que via na Literatura - o trabalho, naturalmente, passou a pesar o peso desse objetivo. Algumas noites, quase que por delírio, ela desejava, olhos brilhando, ser acometida por um grande drama: um roubo, alguma violência, quem sabe humilhações, só para sentir o gosto da ação, o sangue fervendo nas veias, a vida correndo para alcançar a arte, a verdade querendo ser mentira. Depois sentia-se mal, primeiramente por voltar para casa sem nenhuma grande novidade - nada além da sempre mesma carência dos que pagavam por atenção, da calvície disfarçada com penteados deprimentes, do cheiro do chiclete de menta que amenizava o mau hálito dos que a procuravam – e depois, pela constatação de sua paranóia. Ela queria na vida um pouco mais de ficção e, na ficção, razoáveis porções de realidade. Mas Catarina continuava a menina que se sentia mais uma entre várias na Avenidade suja e mal iluminada. A magra, frágil e mortiça moça não exigia demais, apenas sabia que na vida faltava a urgência da ficção, enquanto esta ia carecendo de realidade. Vivia no limiar entre as duas, não podendo se privar de nenhuma, mas torcendo o tempo todo para que elas se encontrassem num ponto qualquer. “Não há literatura que durma a onça escura”, ela sorriu inesperadamente, lembrando Drummond, enquanto adormecia.