13 de outubro de 2008

Voltando a passar pelo coração

"Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar. Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: É proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: Ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca."

A pequena edição de capa amarela só revela o seu peso quando o carregamos no colo. Do Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano despenca um mundo de possiblidades que só esperam que abramos os olhos. É um livro de restrições, de liberdades; de sonhos desperdiçados; do cotidiano e do extraordinário; de política e de amor; de tormentos e ternuras; de coisas tão pequenas que se perdem num abraço, mas que, ao mesmo tempo, ultrapassam a largura que os braços podem forjar. Eduardo Galeano, primeiro cidadão ilustre do Mercosul, nasceu em Montevidéu, em 1940. Mais que o Galeano conhecido por qualquer um que já tenha ouvido falar de uma América Latina de Veias Abertas ou que colecione citações críticas ao imperialismo, ele é o Galeano das palavras que andam, do mundo que vaga, dos mais de 30 títulos traduzidos em mais de 20 línguas, dos olhos azuis e sorriso largo que já completam 68 anos. Mas, de tudo, o que me fica é o impacto do livro de abraços, que, para mim, mais pareceu um aperto. A estúpida ingenuidade das primeiras linhas vai traçando um caminho para o fantástico, que passa pelo absurdo, pelo protesto e pelo prosaico. Galeano passou sua vida sendo arremessado pelos quatro cantos da América Latina. Viveu o exílio dos anos 70 e sentiu várias fomes e dores que não somente as suas próprias. O Livro dos Abraços, como outras obras do autor, nasce do resultado de suas andanças. Uma singela tentativa de congelar a memória. Pequenos momentos, aqueles que sacodem a alma da gente sem a grandiloqüência dos heroísmos de gelo, mas com a grandeza da vida. O começo, por sua descontextualização, incita uma certa inquietação, dessas que vêm só para depositar uma interrogação irritante no meio da testa e depois ir embora. Não sabemos ao certo o que Galeano quer mostrar, quem são as personagens, o porquê de estarem ali, mas sabemos que deve valer o risco. De um pequeno conto entitulado O mundo, sai a primeira síntese dos pensamentos absurdos do autor: "o mundo é isso, um montão de gente, um mar de fogueirinhas". Com a calma que nos é requisitada, continuamos a girar os olhos pelas páginas que seguem e, aos poucos, vão despontando cenários, personagens, criaturas míticas, fábulas: tudo aquilo que, até o final da última página, já estaremos pegando pela mão e chamando pelo nome. De súbitas guerras e relatos doloridos de tortura, a possibilidade de botar reparo nas pequenas coisas, de questionar o papel da arte, desbravar fronteiras não apenas geográficas do mapa da América, mas da moral humana. As mais feias imagens vistas da ótica mais pura que Galeano conseguiu encontrar. A pureza vista pelo ângulo mais frio. E o leitor já submerso num universo único de brincadeira e aguda seriedade. O autor mimetiza suas próprias palavras para construir uma narrativa repetitiva, mas nunca cansativa. Escreve pequenos contos que acabam numa página; outros maiores que logo ganham duas ou três, em que as reticências parecem aparecer para resguardar a melhor parte. O Livro dos Abraços é feito de histórias estilhaçadas que encontram a parte que lhes falta e a cola que as une no meio do caminho. A noite, por exemplo, é uma história ridiculamente pequena que tem suas quatro partes divididas por apenas uma página. Todas falam da mesma mulher, do mesmo cenário, da mesma angústia e mesma alegria; é uma história completa, mas se não fosse fragmentada por essa página, não guardariam o mesmo grau de mistério e significação. É o livro da minúcia. Um trabalho artesanal de colagem de histórias que nos distrai a ponto de que, num momento que nunca saberemos ao certo, descobrimos que os personagens do começo são os mesmos do final do livro. Que a mulher que ele tanto destaca é, na verdade, a Helena de sempre, sua mulher. E assim, num livro que nem é biografia, em contos que nem são ficção, acabamos sabendo de Galeano como pessoa que casou, teve filhos, fome de abraços, saudade da pátria, infarto do miocárdio e simpatia por Portinari. Galeano conduz uma lanterna que observa o movimento tranqüilo da narrativa. Observa as palavras que se dispersam para voltar a se esbarrarem e, finalmente, se abraçarem. Parece banal se pensarmos pequeno, mas como todo silêncio excessivo é estupidez, Galeano dá voz a todas às histórias que encontra por aí abandonadas para compor um livro de agradáveis relatos que tentam, a partir da despretensão, resgatar a grandeza das pequenices da vida. O Livro dos Abraços nunca se esgota; é uma leitura de paciência e de sempre, que nunca encontra razão para parar. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições, diria o autor. Ou não. Apenas acenderia um cigarro e seguiria rumo à percepção de outras pequenas sutilezas.
*texto publicado na Revista Wave