31 de outubro de 2009

"É por dentro!"

Ele mal sabia disfarçar com a polidez de sempre as aflições que irrompiam sua serenidade. Ela, a passos pequenos, sentou-se num lapso de cumplicidade junto dele, joelho a joelho, para escutar o que achou que seriam apenas lamúrias finalmente libertas, ou afliçõezinhas estúpidas que de tão pequenas só sabem apertar, e não fazer doer. Mas elas não vinham, tímidas, com medo do mundo de fora, que poderia ser pior que o de dentro. Continuaram enfurnadas onde não poderiam estar, onde nunca poderiam ter estado. Pensou em assoprar, mas ainda ardia. Os conselhos como bisturis desajeitados querendo vencer os músculos do coração e entrar onde a dor estava para arrancá-la com a brutalidade de um Neandertal. A técnica do band-aid - rápido e indolor - não seria suficiente: era uma polifonia de feridas sussurrando socorro, implorando cura, adivinhando demora; e a mão para puxar o band-aid, uma só, uma e inoperante, só.

Até a palavra, irrequieta, soltou as mãos com fineza e se escondeu, sabendo-se incapaz de continuar: como se verbaliza uma agonia? Lembrou das aulas de Linguística. Recolheu todos os farelos esmigalhados da Teoria dos Atos de Fala com desespero, tentando encontrar algum alento. Ilocução, perlocução: nada o ajudaria a proceder. O problema não era o que dizer, como dizer, com que intencionalidade dizer. O problema era técnico: não havia letra em nosso minguado sistema verbal - e nem em outro qualquer - que pudesse se juntar a outras mais e compor algum discurso que fizesse sentido. Era como querer explicar em palavras o que é um suspiro. A palavra suspiro vai até onde as letras acabam, suas sensações ficam apenas naquele que suspira. Bom seria se elas flutuassem, mostrassem algum molejo, algo que suspirasse, mas letras são só letras, e suspiros são intransferíveis. Ou seja, ele estava sozinho, desamparado: "até tu, Austin?" - os pensamentos diziam. Saber como sair dali também não adiantaria; resultaria numa noite de insônia remoída à exaustão. “Os gestos!”, lembrou deles. Sacanas, se esquivaram todos até sobrar apenas um, encolhido no canto, olhando para o lado e sabendo-se última esperança, último desfecho não-letal daquilo tudo. Ligeiro, o aperto de mão escapou entre os dedos e fugiu. Foi aí que o abraço veio em redenção, num ato solidário que substituiria qualquer discurso. "Um drible, cheio de malandragem, na linguagem" - orgulhava-se, sobretudo da rima. A ação é a única saída para que não se fatiguem as palavras, é um descanso nessa loucura de dizer o tempo todo. Mas no fundo sabia: só há gesticulação em demasia porque faltam palavras para dizer o que precisamos; eis esse mundo desajeitado em que os gestos atropelam, minuto a minuto, infinitas possibilidades de dizer. Aqui, quem tem delicadeza é rei. A única conclusão, meio caduca, ficou enroscada no abraço: muitas de nossas dores fazem parte das pessoas que nós inventamos.

29 de outubro de 2009

Ode tardia

De volta à ficção...

De todas as partes que compõem o curvilíneo contorno feminino, ela é a mais subestimada. Compete com entidades aclamadas da anatomia; as bundas, os seios – até mesmo os ombros, para os admiradores mais polidos – protagonizam com avassaladora indiferença os seus pequenos holocaustos: a batata da perna é uma esquecida. Dotada de feminilidades de donzela, é sensível a grandes esforços, terrenos íngremes e intensos acúmulos de ácido láctico - únicas situações, aliás, em que é minimamente rememorada. Ela não tem poema, não jaz eternizada em nenhum clássico renascentista e nem estocou seus gracejos na memória da música brasileira: não é a coisa mais linda e cheia de graça que desfila a caminho do mar. Nem ao menos presta-se às rimas: nada que seja minimamente refinado rima com batata. Por isso, é consenso que a chamem de panturrilha, nome sisudo, ortodoxo, que nada combina com sua feição desinibida e ainda a suprime de sua mais notável característica: a graça. Ela fica embaixo, onde só os olhares demorados botam reparo, e nem mesmo esses demoram o suficiente para adivinhar algum encanto nesse recôndito sítio anatômico. Atraem olhares o rosto, os ombros, o colo, o dorso, a cintura e as coxas, ainda que não respectivamente, mas a vez da infortuna batata, pobrezinha, nunca chega. Periga ser esquecida para sempre a amargar frustrações junto ao ossudo e desdenhado tornozelo. À exigência implacável dos critérios masculinos, não basta a curvatura desenhada, o sutil sombreamento dos joelhos nas formas bem torneadas; há que ser suscetível de beijos calorosos, e caso não seja, é abandonado. E o mais injusto é que, sem a batata, a perna seria só uma fina estrutura longilínea desprovida de qualquer curvatura, algo muito esquisito, joelho e tornozelo se encontrando em uma linha previsível: sem a batata, não haveria mistério, a perna seria só perna, sem nada para adivinhar. E no entanto, lá está ela, engolindo com seca destreza todas as homenagens negadas, todas as odes suprimidas, toda a fatalidade que lhe coube apenas por ser batata. Vencida até mesmo pelos braços de uma tal de dona Severina, a batata da perna é o ostracismo do corpo.

26 de outubro de 2009

Reportagem - A energia que circula

        De trejeitos amistosos, a ema é considerada a maior ave brasileira. É sempre muito solícita quando tentam alguma aproximação e, apesar de possuir asas enormes, ela não voa. A ema em forma de boneco do Bloco da Ema, grupo carnavalesco do interior de São Paulo, confirma todas essas características, acrescida de uma singularidade: já que não pode voar, pula carnaval sem se importar se é ou não fevereiro. Confeccionada conforme a criatividade de cada ano, ela espera tranqüila pelos passos que irão compor o seu vazio.
       Embalado por alfaias, caixas e ganzás, o batuque do Bloco da Ema transporta para São Paulo as cirandas, o frevo e o maracatu: a cultura nordestina guardada num bloco de rua. Feitas de retalhos de pano e materiais reciclados, as personagens Boi Alado e Cavalo Marinho ajudam a compor o cenário, apertando os foliões que os representam e quase os sufocando no calor de fevereiro.
       A velha história de que “se a montanha não vai a Maomé, Maomé vai até a montanha” não se aplica à vida de Marcos Antonio Azevedo de Souza – o Tony, idealizador do Bloco. Nesse caso, a montanha não foi a Maomé e ele tratou de forjar a sua vinda.
       Nascido em Pernambuco, Tony veio para Piracicaba, interior de São Paulo, em 2002. Passou alguns anos ignorando a distância e enganando a saudade em suas idas para Recife. Há sete anos, resolveu vencer a geografia e montar em Piracicaba um pedacinho de sua terra natal: nasceu, assim, o Bloco da Ema. Maomé e montanha continuaram em seus lugares, e a tímida cidade paulistana ganhou uma rota de fuga do carnaval que se vê por aí.
       O Bloco da Ema é o ponto de convergência dos vários públicos de Piracicaba. Todo fevereiro, centenas de pessoas se reúnem para compartilhar o saudosismo de outros carnavais – aqueles mais ingênuos, de fantasias, sapatilhas e confetes. O Bloco da Ema é cheio de nostalgia, mas não daquelas encharcadas de sentimentalismo, e sim das que querem trazer de volta ao coração as lembranças de tempos que não voltam mais.
       Quando chegou, Tony, muito cauteloso, achou que seria injusto trazer Pernambuco para a cidade sem criar um elo entre os dois. Foi aí que ele vasculhou a cultura piracicabana até encontrar a tão necessária familiaridade. O batuque de umbigada, o samba-de-lenço e a Congada do Divino, se tornaram o gancho perfeito de que o artista precisava. Tony pegou a cultura pernambucana por uma mão, a de Piracicaba pela outra, e juntou as duas numa mesma ciranda. “É uma cultura muito rica, e os próprios moradores não se dão conta”, indigna-se Tony. Foi preciso essa certeza vir de fora para se tornar óbvia. Às vezes, só observando as coisas com olhar de turista é possível algum deslumbre sobre o que se vê todos os dias.
       Ele chegou à cidade como artista plástico, mas foi como músico que ele permaneceu. Curiosamente, para ele, aquele era um momento de deixar a música de lado e focar nas artes. De início, começou a trabalhar na montagem e monitoramento do Salão de Belas Artes de Piracicaba. Mais tarde, apenas, é que ele se reconciliou com a música. Tentando justificar-se, Tony relembra seu pensamento da época: “Já tem tanta gente fazendo; o que eu posso fazer que seja realmente novo?”. Por sorte, não demorou muito para que ele descobrisse na música o poder de transformação presente nas artes plásticas. “Sou muito ligado nessa coisa da mudança. Eu olho para uma obra e penso ‘a tinta e a madeira se transformaram nisso, que é abstrato, se existe é porque eu criei”, conta, extasiado. “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”, é a frase que ilustra o folder de uma de suas exposições.
       Foi dessa fonte cheia de bons intentos que emergiu o Bloco da Ema. O transporte imaginário de Pernambuco para Piracicaba demandava energia, que deveria ser compensada pelas características afins entre os dois. “No começo, disseram que eu era doido, que esse não era o jeito de o piracicabano pular carnaval”. Assim mesmo, não temendo assustar ninguém por saber-se inofensivo, o Bloco da Ema desfilou em seu primeiro ano com minguados acompanhantes, num cortejo de maracatu e marchinhas, que, se não gerou muita repercussão, ao menos inseriu o nome da Ema no circuito cultural da cidade.
       Mas não é esse anseio de nostalgia que vai fazer com que o carnaval dos funks e trios elétricos perca seu fôlego. Todo ano, atulhado de letras eróticas e foliões ousados, o carnaval se manifesta das mais diferentes maneiras em todos os cantos do país. Seja sob a forma de bonecos nas ruas de Olinda ou de trancinhas no cabelo da mais recente revelação baiana, o carnaval pula. Por isso, o folclore de Pernambuco trazido por Tony para São Paulo é só mais uma peça da engrenagem que move o carnaval, que não anula as maneiras já existentes de festejá-lo, mas com elas pacificamente coexiste.
       A Recife improvisada de Tony é menor, sem grandes pretensões e não tem mar com que se possa sincronizar a cadência do carnaval, mas não economiza ritmos para colorir os dias de folia. Durante o desfile do Bloco da Ema, o que se vê de longe é um aglomerado de pontinhos coloridos saltitando no mesmo tom. Crianças, jovens e idosos unidos num mesmo denominador comum: a festa. Dizer isso não implica afirmar que o carnaval provoca o milagre da homogeneização, em que diferenças sociais são dissolvidas sob a benção das serpentinas, nem tampouco elevar o carnaval à condição de afirmativo do moribundo ufanismo brasileiro. A contemplação da cena é o lembrete de que as culturas conversam, discutem e se multiplicam, criando formas híbridas de si mesmas.
       No tradicional trajeto do Bloco da Ema, que passeia entre os pontos turísticos de Piracicaba, como a Rua do Porto e o Largo dos Pescadores, muitas pessoas se deixam contaminar pela alegria, deixando confuso quem tentar descobrir o que é bloco e o que é público. Como que lembrando silenciosamente a cantiga de Lia de Itamaracá, ilustre cirandeira pernambucana, o Bloco funciona por pressupostos de companheirismo: “essa ciranda não é minha só/ ela é todos nós/ela é de todos nós”. A Ema, simpática e dançante, responde com acenos aos que espiam nas janelas das ruas por onde passa; alguns deles, ela sabe, nunca serão cativados.
       No mesmo fevereiro, milhões de pessoas se acotovelam para contemplar a festa do Galo da Madrugada, em Pernambuco. Todo sábado de carnaval, lá está ele, imponente, a atrair atenções exclusivas. Em 2009, o Galo da Madrugada mobilizou mais de 2 milhões de pessoas no carnaval pernambucano. Considerado o maior do mundo pelo Guiness Book, o Galo da Madrugada deixaria qualquer ema envergonhada, mas a exemplo de seu garboso hino, a Ema, essa com letra maiúscula, “também é de briga” e “está na rua, saudando o carnaval”. Enquanto isso, numa São Paulo de tecnologias globalizantes e apressadas, pouco propícia para regionalismos saudosos, Tony continua a conduzir seu Bloco, imerso em sua Recife de festim.


O fogo e outras interrogações
       É julho e o frio se instala soberano pela cidade de Piracicaba. Prova disso é a neblina que esbranquiça o caminho até a casa do entrevistado. No calendário, sete meses separam esse mês frio da quentura acolhedora de fevereiro e suas festividades carnavalescas. No ateliê de Tony Azevedo, no entanto, não existe calendário: o carnaval fica espalhado ali pelo ano inteiro.
       É lá que Tony vive e trabalha. Mora com a mulher, Camila Daniele dos Santos, fotógrafa, artista plástica e “parceira, em todos os sentidos”. Desde que ele deixou Pernambuco, são elas – Camila e casa – que acomodam sua paixão pela arte. Pela sala, uma bagunça muito organizada de instrumentos, telas, cartazes e fotografias, que poderia contar sozinha toda a história da cultura pernambucana.
       Quando questionado sobre a formação do Bloco da Ema, o olhar de Tony fica embaralhado. Firme nos tais pressupostos de companheirismo, ele responde: “O que nós temos são colaboradores, pessoas que se identificaram com a idéia e não deixam ela morrer ”. Só então, como que encontrando a resposta exata para a questão, Tony encerra: “é tudo uma energia que circula”.        Por isso é que o Bloco da Ema é apenas uma ponta do fio que liga a cultura pernambucana a de Piracicaba. O Grupo Erê e o Porto Maracatu, ambos grupos de música nordestina, são ramificações do Bloco e, como ele, querem manter vivo o folclore do Nordeste que o tempo ou a malvada geografia ameaçam extinguir.
Assim como o de Tony, o olhar de Camila também se embaralha quando tenta explicar o que é a tal “energia que circula”. Camila faz a curadoria das exposições de Tony, fotografa as apresentações do Bloco da Ema, pinta, costura estandartes e ajuda a confeccionar os bonecos. Mas, ainda assim, responde, humilde: “acho que tudo aconteceu mesmo pela vontade que o Tony transmite, de querer fazer com que dê certo.”        Experimental que é, o Bloco da Ema precisa ser vivido para ser compreendido. O desfecho da questão, no entanto, ficou escondido em outra declamação de Camila: “Talvez nem mesmo aos que conhecem o trabalho de perto seja dado o vislumbre de uma resposta aceitável, já que ele mesmo não se dá ao trabalho de se explicar”. Dizem que para entender o que é o fogo, há que se entrar na chama e se misturar com ele.
       É exatamente a mistura que fascina Tony. Tanto na música, quanto na arte, tudo o que é passível de transformação vira massa de modelar nas mãos do pernambucano. Mas ele aconselha: “é preciso saber colocar a inspiração no material adequado”. Tony é um homem atento a contenções, sabe que até mesmo o desperdício de criatividade pode prejudicar o equilíbrio do mundo.
       Em tempos pouco afeitos a ilustres anônimos, Tony finca o pé no que faz, estendendo o olhar para o futuro. Colocando-se inteiro em tudo o que faz, cuida do Bloco da Ema com um carinho aparente: a cada apresentação, é como se o carregasse no colo. Com orgulho de pai, revela, quase segredando, as idéias do Bloco para o próximo fevereiro: “um circo e uma Ema gigante, de 10 metros”. Vai ver que o poeta Maiakovski estava certo ao dizer que “cada um, ao nascer, traz sua dose de amor”.