9 de abril de 2009

Metades

Nascida em 1988, numa daquelas manhãs de abril em que tudo parece quieto demais, era uma menina feliz. Acostumada desde cedo à calmaria da cidade onde nasceu, sabia que o mundo era maior. Era inclinada às pessoas, muitas delas, mas não todas – tinha especial apreço pela tia Dirce, uma agradável mistura de cabelos brancos e bondade que tomava conta dela em alguns sábados de festa de seus pais, ainda que não houvesse muito do que tomar conta. Sempre fora quieta, pelo menos nessas circunstâncias, sem a mãe por perto para frear sua euforia. Nos outros momentos, viva pendurada em árvores, deslizando em patins e correndo impunemente entre os meninos da rua. Tinha medo da Rifocina à que a mãe a submetia depois de ralar os joelhos no asfalto quente e, em hipótese alguma, enfrentava o escuro. Ainda que caçula de três filhos, não conseguia atrair as adulações de seus pais, sempre frustrando suas sessões de choro ininterrupto em longas tardes de castigo no quarto. Os pais, muito cuidadosos, espiavam vez ou outra para checar o cumprimento da penitência, mas que tal atitude era só pretexto para levar-lhe um copo de leite com chocolate batido, isso ela já sabia. Criada em família de comercial de margarina, desacostumou-se às asperezas da vida. Como adivinharia Lya Luft anos mais tarde, não sabia se livrar do monstro metade infantil metade adulto que nos faz achar absurdo que pessoas e paixões morram. Assim, amargou num choro sofrido e desacreditado a morte da única avó, Antonia. A maturidade só veio depois. Teimou em escrever a partir do dia em que ganhou um concurso de redação do colégio por duas vezes seguidas e pôde comprar um patinete. Absurdo dos absurdos, de ex-aspirante a astronauta, tornou-se potencial jornalista. Iniciou suas leituras por teimosia, por não saber querer outra coisa. Espantava-se com a complexidade do que não podia entender, mas não desistia sem tentar, e deve a J.D. Salinger os primeiros palavrões que aprendeu – e que logo aplicaria sem nenhum pudor. Nasceu no interior de São Paulo, numa cidade que ainda vivia intensamente as serestas regadas a sambas nostálgicos, comia pipoca na praça e ia ao zoológico rir dos macacos aos domingos: uma cidade infanto-juvenil, que não conhecia a malícia. Mas, inevitavelmente, cresceram: ela e a cidade. Muitos meses de abril se passaram, o Sol subiu e desceu muitas vezes, as vontades guinaram revoltas na direção adulta – ainda que o medo da Rifocina continuasse ao seu lado – para que ela se tornasse o que é. E é, em linhas gerais, uma ariana fervorosa e verborrágica inconseqüente, feita inteiramente de sonhos e medos. De menina ossuda e desconjuntada para a atual estrutura longilínea, volúvel e inquieta que conhecemos hoje, passou num susto. Hoje, sorri com todos os dentes sempre que pode, ainda que se entregue, destemida, às mais apavorantes crises existenciais. Inocente incurável, ainda que sutilmente apreensiva, vive longe da cidade que a viu crescer, dos pais, irmãos e cachorros, talvez pelo desejo de liberdade ou pela necessidade de lidar com o medo do mundo (depois de um tempo, já não se sabe mais). Sempre mergulhada até as orelhas no presente, vive em descompasso entre o que é e o que ainda poderá ser. Com apenas 20 anos, só por capricho ou obstinação, periga chegar até os 115, só para ver no que vai dar. Possivelmente, em sua lápide, se houver uma, o lembrete sutil: “aqui jaz Renata Penzani: atordoada com a gravidade da vida, morreu de tanto viver”.