6 de janeiro de 2009

Do latim: a estrangeira.

A menina suja e despenteada estava parada entre a calçada e o portão da casa como se ambos já pertencessem a ela. Aparentemente vizinha da parede azul que chamou a sua atenção, ela queria convencer sua imaginação de que o que havia além do muro era bonito e interessante. Já estava ali há muito tempo. Não podiam saber os que acabavam de chegar no carro que ela devorava com os olhos, mas o enorme sorriso de satisfação ao ver alguém finalmente chegando foi quem a dedurou. Lambuzada de sorvete nas mãos e terra nos pés, exibia o sorriso honesto e desdentado a que se referiu Mario Quintana, mesmo que não fizesse uma vaga idéia de quem ele fosse. Velhinho, para ela, só seu avô, que certamente arrancava os cabelos à sua procura. Mal chegaram as pessoas por quem ela esperava e ela já partiu em busca de seu pequeno objetivo.
As crianças são cheias de pequenas metas, a serem cumpridas com o empenho de um navegador a procurar por novas terras. Uma volta no quarteirão calçando patins ganha conotação épica: as crianças constroem diariamente, com suas espadas, cavalos e armaduras de mentira, suas pequenas Ilíadas. Quando querem, trocam o cenário: onde estava a terra, aparece o céu, o cavalo vira tapete e a armadura, um chapéu pontudo com plumas coloridas, engraçado ou intimidante.
A menina falava, sem parar para reparar no que estava dizendo. Sabia que fazia sentido na sua cabeça e não precisava pensar mais sobre isso. As palavras desobedientes pulavam da boca na maior das boas intenções, queriam inocentemente expressar toda a euforia que cabia naqueles aproximados um metro e nove centímetros de pura inocência. "Bárbara, mas meus amigos me chamam de Barba". Ela se antecipava nas suas falas, sem muita articulação, comendo algumas sílabas, e recuperando-as com uma pausa e uma tomada de fôlego. Continuava, destemida, despreocupada, desembestada, a esbanjar seu léxico infantil. Os interlocutores, pobres adultos que nem se sabiam como tais, ouviam a tudo com admiração e certo espanto - como é que a infância de repente se tornou essa vontade de querer adiantar as coisas? - , respondendo como podiam às inúmeras interrogações que vinham de Barba e deles mesmos. "Posso ver a piscina? Posso ver tudo? Posso?". Ela nem se importava em ser atendida ou não, queria apenas falar. Nem sequer esperava pela resposta: dizia alguma coisa e já ia andando, pequeninamente insolente, acelerada, à frente dos três interlocutores que não conseguiam acompanhá-la. Sob uma chuva de especulações e curiosidades dos adultos, o corpinho de Barba saltitava pela casa, certamente lançando mão do plano de invasão que traçou mentalmente enquanto desenhava a rabiscos tortos a planta da casa. As justificativas sobre a impossibilidade de nadar na água cheia de bactérias da piscina ou as recomendações sobre avisar a mãe que estava ali passavam despercebidas. Só respondia a trivialidades como "quem penteou o seu cabelo?" ou "quantos anos você tem?". O ambiente desconhecido a ser desbravado era seu novo brinquedo.
Acabou explorando o corredor, a escada, os arbustos, o cachorro e a água levemente esverdeada da piscina, embora não tenha visto de fato nenhuma dessas coisas. Seus olhos brilhavam como quem olha para um castelo e seus milhares de mistérios. Saiu cheia de si, ostentando o troféu invisível de mais um de seus pequenos combates. Mal reparou nas portas que levavam a novos espaços desconhecidos: estava fortemente convencida de aquilo era tudo. Despediu-se apressada, ocupando-se em apontar seu barquinho e remo para outra direção.