(Um conto pra você Ismar)
-- Alice Sant´Anna:
"Eu ainda tinha dentes de leite quando fomos apresentados. Não estou exagerando. Ismar, quando aparecia aqui em casa, falava em livros e música e cinema e mais um vasto repertório, aparentando no mínimo trinta anos. Talvez fossem os cabelos, ou o colete de francês em plena Nouvelle Vague: o fato é que Ismar era sinônimo de evento. De escolher tópicos e saia de bolinhas, só pra ver a sua barba se abrindo em sorriso de aprovação.
Cantando de braços dados uma marchinha de carnaval, hoje, percebo como é difícil mudar essa impressão. É que a sua presença não é dessas discretas, camufladas, num canto de sala. Ismar que diz: atente para isso ! e me mostra músicas cheias de violinos e outros instrumentos que só ele é capaz de inventar, num movimento de mãos, olhos e dentes.
A sua arquitetura é para ser estudada. De camisa listrada - ele cabe no seu corpo ? Sentado na cama, à meia-luz do abajur, as paredes com fotografias de filmes em preto e branco e citações de Bandeira a Sartre, Ismar às vezes é só fumaça de cigarro, pairando pelo quarto. Nos tênis, ele escreveu com caligrafia antiga: "um gênio", no esquerdo, "ou uma besta ?", no direito.
Os anjos tortos são sempre mais espertos, e preferem o gauche. Ismar que descarta uma cidade inteira com um levantar de sobrancelhas -- porque o que é feio e de mau gosto, ah que ele comenta ! Mas também, e principalmente, aquele que vibra, que não se contém num solo de trompete ou numa palavra bonita. Num observar de detalhes que parece que engole a gente, porque o menino é, acima de tudo, poeta.
A verdade é que Ismar não existe. É verbo na primeira conjugação, é criação da própria criatura, é personagem tão rico que expande os limites e dá inveja para os outros contadores de história."
30 de janeiro de 2007
Sismar, amar...
(Um conto pra você Ismar)
-- Alice Sant´Anna:
"Eu ainda tinha dentes de leite quando fomos apresentados. Não estou exagerando. Ismar, quando aparecia aqui em casa, falava em livros e música e cinema e mais um vasto repertório, aparentando no mínimo trinta anos. Talvez fossem os cabelos, ou o colete de francês em plena Nouvelle Vague: o fato é que Ismar era sinônimo de evento. De escolher tópicos e saia de bolinhas, só pra ver a sua barba se abrindo em sorriso de aprovação.
Cantando de braços dados uma marchinha de carnaval, hoje, percebo como é difícil mudar essa impressão. É que a sua presença não é dessas discretas, camufladas, num canto de sala. Ismar que diz: atente para isso ! e me mostra músicas cheias de violinos e outros instrumentos que só ele é capaz de inventar, num movimento de mãos, olhos e dentes.
A sua arquitetura é para ser estudada. De camisa listrada - ele cabe no seu corpo ? Sentado na cama, à meia-luz do abajur, as paredes com fotografias de filmes em preto e branco e citações de Bandeira a Sartre, Ismar às vezes é só fumaça de cigarro, pairando pelo quarto. Nos tênis, ele escreveu com caligrafia antiga: "um gênio", no esquerdo, "ou uma besta ?", no direito.
Os anjos tortos são sempre mais espertos, e preferem o gauche. Ismar que descarta uma cidade inteira com um levantar de sobrancelhas -- porque o que é feio e de mau gosto, ah que ele comenta ! Mas também, e principalmente, aquele que vibra, que não se contém num solo de trompete ou numa palavra bonita. Num observar de detalhes que parece que engole a gente, porque o menino é, acima de tudo, poeta.
A verdade é que Ismar não existe. É verbo na primeira conjugação, é criação da própria criatura, é personagem tão rico que expande os limites e dá inveja para os outros contadores de história."
Ferreira Gullar
14 de janeiro de 2007
Saudadezinha inconseqüente
Passeando por aí
Eu comigo mesma
E mais ninguém
Pra ficar tudo bem
Ofuscar os problemas
Tornar as dores pequenas
Esquecer que os momentos
Se convertem em pensamentos
Eles são como bolinhas de metal pesado
Girando pra todo lado
Agora vê se te vira e agüenta
A confusão que se faz
Na caixinha de massa cinzenta
Que faz pesar
O que era leve
Leve
Me faltam músculos morais
Pra carregar tantos ais
Ah, que bobagem
Logo eu, que não confundo
Amor com miragem
Pergunto à nuvem negra
Quando é que o sol vai brilhar
E a mim mesma
Se minha razão vai voltar
"Quem não tem visão
bate a cara contra o muro"
Sabe
Eu nunca fui
Alguém de muitas certezas
Mas tem alguma coisa
Por trás desses olhos
Que me aflige
E é fulminante
A vontade de estar
Em qualquer lugar
Que você lance o olhar
E já não mais cabe
Tanta aflição
Por não saber
Por não ver
Por temer
Que tantas cores
Se desbotem assim
Pra mim
Deixando tudo aqui dentro
Em absoluta revolução
Ah...certas imagens
São capazes
De congestionar um coração.
11 de janeiro de 2007
Fome de amor cortês
Com a palavra, Arnaldo Jabor:
Abre parênteses
Dia
Logos:
Hoje, numa loja qualquer:
- Procura uma P aí.
- Hum, acho que não tem.
- Tem que ter...
- Não tem, tô te dizendo, só G.
- Claro que tem, né, ninguém quer ser G!
10 de janeiro de 2007
Pra não dizer que não lembrei das flores.
1968 , Rua Maria Antônia, prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. A porta da sala de aula é aberta como se tivesse levado um coice e aparecem três soldados armados com metralhadoras. Diante de 200 alunos, a professora de Ciências Sociais, Jessita Nogueira Moutinho, de 24 anos, encara bem os soldados e, com voz firme, pergunta:
- Vocês são meus alunos?
-Não, mas é que estamos procurando uma pessoa e...
-Isto aqui é uma sala de aula e aqui dentro só ficam o professor e alunos. De maneira que vocês podem se retirar. Se vocês querem pegar alguém não será em minha aula. Com licença, por favor.
A professora indica a porta, os soldados saem e esperam do lado de fora. Quando a aula termina, os soldados entram de novo, mas o tal aluno, claro, já estava longe.
No início de 1970, Chico volta ao Brasil em meio a um estardalhaço (organizado por recomendação de Vinícius), que incluía especial para a Globo, show no Sucata e o lançamento do LP Chico Buarque Vol 4. Mas o Brasil não era aquele descrito nas cartas de André Midani. A tortura e desaparecimento de pessoas contrárias ao regime do general Médici eram uma constante. O ufanismo do ditador ("Ninguém segura este país") aderia aos carros ("Brasil, ame-o ou deixe-o", quando não "Ame-o, ou morra!"), e a algumas canções populares ("Ninguém segura a juventude do Brasil"), tudo isso no ano que a seleção canarinho conquistaria o tricampeonato mundial. Chico fez "com os nervos mesmo" Apesar de você e enviou para a censura certo de que não passaria. Passou. O compacto com Desalento e Apesar de você atingia a marca de 100 mil cópias quando um jornal insinuou que a música era uma homenagem ao presidente Médici. A gravadora foi invadida, as cópias destruídas. Num interrogatório quiseram saber de Chico quem era o VOCÊ: "É uma mulher muito mandona, autoritária", disse ele.
(Muito bom, Chico! Muito bom.)
Juntos, viram o homem pisar pela primeira vez na Lua, em julho de 1969. À distância, acompanharam o surgimento da luta armada no Brasil, o primeiro seqüestro de um embaixador estrangeiro para obter a libertação de prisioneiros políticos, o dramático esfarinhamento da esquerda brasileira em miríades de grupúsculos. Em novembro, Toquinho resolveu voltar. No último dia, foi ao apartamento de Chico e lhe mostrou um samba ainda sem letra. Só então teve coragem de contar que estava partindo. "Fiz essa música de saudade mesmo", disse, "vou embora amanhã". Era o Samba de Orly, com todo aquele clima de exílio, de impossibilidade. Toquinho conta que Chico fez na hora os versos finais:
E diz como é que anda aquela vida à toa e se puder me manda uma notícia boa
Bem depois, quando estava preparando o LP Construção, Chico convidou Vinícius para ajudar na letra. Três dos versos que o poeta escreveu:
pede perdão pela omissão um tanto forçada...
8 de janeiro de 2007
"Não me leve a mal, me leve apenas para andar por aí"
O tempo, nublado
A cor, cinza
Os humores, eufóricos
A música, alta
Horas a menos
Ares amenos
Pessoas, muitas
Dinheiro, pouco
Madrugada adentro
Mundo afora
A rua, entupida
Os copos, cheios
A alma, vazia
O clima, leve
Pensar, fato
Sentir, ato
O encanto, exato
Os silêncios, intencionais
O cheiro, característico
O gosto, velho conhecido
Os abraços, bem vindos
O riso, uníssono
Os devaneios, contínuos
Seriedade, onde?
Importância, importa?
Doçura, eu vi, eu vi!
O tempo, breve
As cores, todas
Aqui
Ali
Pra cá
Pra lá
Compaixão
- ei! -
Com paixão.
Abre aspas, Guimarães Rosa, 'O grande sertão veredas' :
"Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não queria acontecida simples, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até aquela - alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão."
lindo de doer isso, cara!
