29 de outubro de 2009

Ode tardia

De volta à ficção...

De todas as partes que compõem o curvilíneo contorno feminino, ela é a mais subestimada. Compete com entidades aclamadas da anatomia; as bundas, os seios – até mesmo os ombros, para os admiradores mais polidos – protagonizam com avassaladora indiferença os seus pequenos holocaustos: a batata da perna é uma esquecida. Dotada de feminilidades de donzela, é sensível a grandes esforços, terrenos íngremes e intensos acúmulos de ácido láctico - únicas situações, aliás, em que é minimamente rememorada. Ela não tem poema, não jaz eternizada em nenhum clássico renascentista e nem estocou seus gracejos na memória da música brasileira: não é a coisa mais linda e cheia de graça que desfila a caminho do mar. Nem ao menos presta-se às rimas: nada que seja minimamente refinado rima com batata. Por isso, é consenso que a chamem de panturrilha, nome sisudo, ortodoxo, que nada combina com sua feição desinibida e ainda a suprime de sua mais notável característica: a graça. Ela fica embaixo, onde só os olhares demorados botam reparo, e nem mesmo esses demoram o suficiente para adivinhar algum encanto nesse recôndito sítio anatômico. Atraem olhares o rosto, os ombros, o colo, o dorso, a cintura e as coxas, ainda que não respectivamente, mas a vez da infortuna batata, pobrezinha, nunca chega. Periga ser esquecida para sempre a amargar frustrações junto ao ossudo e desdenhado tornozelo. À exigência implacável dos critérios masculinos, não basta a curvatura desenhada, o sutil sombreamento dos joelhos nas formas bem torneadas; há que ser suscetível de beijos calorosos, e caso não seja, é abandonado. E o mais injusto é que, sem a batata, a perna seria só uma fina estrutura longilínea desprovida de qualquer curvatura, algo muito esquisito, joelho e tornozelo se encontrando em uma linha previsível: sem a batata, não haveria mistério, a perna seria só perna, sem nada para adivinhar. E no entanto, lá está ela, engolindo com seca destreza todas as homenagens negadas, todas as odes suprimidas, toda a fatalidade que lhe coube apenas por ser batata. Vencida até mesmo pelos braços de uma tal de dona Severina, a batata da perna é o ostracismo do corpo.

Um comentário:

Karen Oliveira disse...

eu diria até que se trata de uma vírgula estratégicamente colocada para quebrar a monotonia do ritmo da perna...
e é panturrilha para as mulheres que fazem musculação
e batata para as outras mortais.