O poeta Maiakóvski escreveu: “em algum lugar do mundo, acho que no Brasil, existe um homem feliz”. Acho que o encontrei. Atende por Cabral, tem poucos dentes que escaparam de amarelecer, e tinha sono quando o conheci. Usava uma camiseta de tom indeciso entre o cinza e o bege claro, ocupava-se no conserto de um rádio velho e tinha duas rugas especificamente simpáticas no canto dos olhos. Entre os dedos, sossegava um cigarro, que cairia no próximo assovio de Cabral. A tal da felicidade, que ele tinha, poderia culpar muitas coisas. Um pouco da culpa fica, inevitavelmente, para Vivi, sua mulher: toda sorrisos e gentilezas, dessas que deixam o seu palavrão encabulado, e os seu grossos modos com vergonha de se mostrar. Outro tanto para o fato de que é dono de um dos pedacinhos mais interessantes da Bahia: “Cabral-Descobertas” - compra, vende, troca e encanta. Rua do Carmo, nº 17, Pelourinho, Salvador. O lugar, um pequeno beco que dá caminho a um mundo de quinquilharias e miudezas que poderiam ocupar todo o espaço existente, não fosse pela simpatia com que elas te conquistam. Um boneco Smurf, velho como a pólvora, me olhava com ternura, pendurado em um elástico na parede. Do outro lado, uma prateleira que poderia contar sozinha toda a história dos anos 80: brinquedos, fotografias, cartazes, câmeras, rádios, quadros: pequenos pedaços de história. O lugar todo era tomado de coisas; até para respirar, é melhor que se procure um espaço. Espingardas enferrujadas em posição de mira assustavam os mais incautos, ao que a música dos Mutantes devolvia a calmaria. “Você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina”. Não me espantaria se encontrasse tudo isso por ali mesmo, incluindo a Carolina. A cada curiosidade, levantava-se uma forte onda de poeira e mofo, mas até isso, ali, eram só simpatia. Ali, repousava empoeirada toda a coleção de playmobills, enquanto dois meninos reviravam a caixa de fotografias em cima do balcão. Vivi não se importava, ria e contava como adorava a visita de estudantes. “Quem são esses?”, disse o menino apontando para uma das fotografias da caixa. “São pessoas desconhecidas, fotos que foram ficando, ficando, e hoje ninguém mais lembra de quem são”. “Macabro”, afirmou com uma certa ênfase, deixando a velha caixa em paz. E a música complementava o cenário. “Vivemos na melhor cidade da América do Sul, da América do Sul”. "Lalarilalá", cantarolavam alguns.
De volta a Maiakóvski, no fundo, o resto da culpa pela felicidade é, simplesmente, da Bahia. Não há como ser triste na Bahia. Em São Paulo talvez, Minas Gerais, quem sabe, mas não na Bahia. Ameaçando uma pontinha de descontentamento, mude-se: Aracaju com certeza receberia com mais delicadeza o seu penar. Cabral contava já os seus cinquenta-e-poucos anos, mas talvez pela convivência ininterrupta com as velharias, aparentava mais. Seus olhos pendiam para o lado, convergiam com o nariz e formavam uma imagem que lembrava a de um buldogue, desses boa-praça, rabinho sempre abanando. Com Vivi, o contrário: tinha, obviamente, mais idade, mas algo no seu jeito denunciava uma menina de rabo-de-cavalo saindo para o colégio. Tinha o rosto todo dobrado em marcas de expressão, mas isso não enrijecia sua feição, apenas nos fazia imaginar o que ela estava fazendo enquanto o tempo exercia sua função de passar. Adorável Vivi. Entre os dois, o denominador comum: sorriso de não economizar dentes, e uma habilidade de fazer-nos sentir em casa. “Venha, que eu te mostro o resto”, ouvíamos, sem nem reparar de quem vinha. E Cabral falava, mantendo a familiaridade no tom de voz. Falava aos que apareciam por ali, aos montes, como quem fala a um filho mais novo: uma preocupação sutil que alertava dos perigos do mundo, mas que não escondia a vontade de se juntar na aventura.
Havia, por ali, uma calmaria imune à bagunça dos visitantes, indiferente à poeira que levantava a todo instante e fazia tossir um ou outro, ao gato que passou e derrubou uma estátua. Algo no ar que nos lembrava de que já fomos – e, de alguma maneira, ali, ainda éramos – mais ingênuos. Vivi logo interrompeu o silêncio: “...mas vocês encontraram o que vieram procurar na Bahia?” – dizia aquilo carregando na voz tudo o que podia de afeição, e talvez o olhar por ele só, fosse já uma pergunta. Ela não falava em “procurar”, muito menos em “encontrar”, mas todos entendíamos e respondíamos, com surpresas expressões de contentamento, o que também poderia ser compreendido como um Sim.
2 comentários:
Ai ai (leia-se um suspiro) Que lindo Re! amei!
gostei da estória . vivi ainda está aaqui. ainda não casei com ela. não sou tão velho como vc disse , talvez semi-novo . a loja tá rolando , mil novidades velhas abraços joao cabral cabraldescobertas@gmail.com
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