Da série: "perder-se também é um caminho"
Um apartamento na cobertura de um prédio. Um quarto de empregada abandonado aos olhos da patroa. Uma mulher presa ao conforto de sua vida. Assim começa “A Paixão Segundo G.H”. O livro nos transporta para os confins do pensamento humano, através do fluxo de (in)consciência da personagem-narradora. Somente duas personagens povoam o livro, mas muitas reflexões povoam o nosso pensamento.
G.H é uma mulher como outra qualquer, até o momento em que se depara com o que até então supunha não existir. A partir da demissão da empregada, ela se vê obrigada a limpar o apartamento, função para a qual nunca havia se prestado, mas que despertava o seu interesse, afinal, “limpar é colocar as coisas em ordem” e a organização dava a sensação de segurança de que G.H tanto precisava. A idéia de abrir o quartinho da empregada produzia na mente de G.H as imagens mais sórdidas: julgava encontrar um lugar repleto de traças e tomado pelo mofo. Mas não, o quarto era o recanto de limpeza que G.H julgava existir somente no seu mundo. Ao abrir o guarda-roupa, a calma da personagem é quebrada pela saída de uma barata, que, ligeira, tentava fugir. A partir disso, começa uma enorme viagem pela imaginação da personagem.
A barata promoveu a catarse e significou um máximo estado de introspecção. G.H começa o seu processo de encontro consigo mesma, uma espécie de auto-resgate: “Eu procuraria não esquecer que os geólogos já sabem que no fundo do subsolo do Saara há um imenso lago de água potável (...) O deserto tem uma umidade que é preciso encontrar de novo”. G.H nos leva até o seu passado, relatando situações que até então estavam engavetadas em seu pensamento. O aborto de seu filho volta com força total, e a faz reviver a sensação de que estar grávida era como ter um peixe devorando o seu interior. Essa frieza de G.H assusta o leitor, e, no início, projeta-se no modo como a personagem encara a barata. Mas esse distanciamento era, na verdade, alienação, e é dessa constatação que surge em G.H a vontade de transformação.
O aparecimento da barata balança os alicerces da vida de G.H, e ameaça derrubar toda a sua segurança, uma vez que a barata simboliza, no livro, a desorganização. “A isso quereria chamar desorganização, e teria segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização, pois não quero me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro (mundo)”. A personagem tinha medo de desviar do caminho que conhecia, tinha medo de relatar o que aconteceu para o leitor, mas demonstra, desde o começo do livro, a capacidade de segurar na mão imaginária do interlocutor, e relatar com detalhes o acontecido.“É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto. “É como se eu tivesse uma moeda, e não soubesse em que país ela vale”. Essa coragem evolui até chegar ao seu ápice.
Clarice, através de G.H, nos faz supor a vida em dois planos: o da limpeza, representada pelo conforto do apartamento de G.H, e o da sujeira, representada pela barata e toda a sua significação. A personagem vivia mergulhada em sua rotina de apartamento e café, sem atentar para toda a subversão que existia no mundo. A barata a fez ter contato com a imundície, que, sem ela perceber, a levou para um estado de consciência jamais habitado antes. Nesse trecho do livro – assim como em vários outros - há passagens bíblicas muito emblemáticas e recorrentes que associam a barata ao imundo. O próprio nome do livro, cuja palavra “paixão” também pode ser interpretada como o envolvimento profundo do leitor no mergulho da personagem, é uma alusão explícita à Paixão vivida por Jesus Cristo. O contato com a barata era a sua chaga; a reflexão produzida por ele, sua via-crucis; e o ato de comer o inseto, sua crucificação.
A porta do guarda-roupa não se abrira por acaso, e não só o contato visual com a barata se fazia necessário, como também o contato mais profundo: o tátil e o gustativo. A sensação primeira de G.H foi de nojo, de repulsa por aquilo que ela via como a representação do que de mais sujo havia no mundo, e foi esse sentimento o ímpeto de força que fez G.H comprimir o inseto contra a porta; depois, aconteceu a identificação, a sensação de que ela e a barata não eram de todo diferentes. “O que nela é exposto, é o que em mim eu escondo”: essa era a diferença essencial entre ambas as criaturas, mas que, na verdade, tornava-as cada vez mais iguais. G.H, então, passou a nutrir um certo sentimento de compaixão pela barata. Enquanto esta agonizava no limite entre a porta do guarda-roupa e o chão no quarto, G.H estendia toda a sua existência no espaço daquele quarto, e agonizava em seu entendimento de si mesma. “Como eu não sabia o que eu era, então não-ser era a minha maior aproximação da verdade”. Comer a barata seria o seu modo de evasão. Era quase uma obrigação, a partir da qual a personagem poderia entender o gosto daquilo que ignorava: “Até então meus sentidos estavam desligados/mudos para o gosto das coisas”.
Todas as obras de Clarice prevêem uma mudança nas personagens principais. Por isso é que “A paixão segundo G.H” não é um romance cíclico. A G.H do final do livro não é a mesma que se deparou com o quarto da empregada. Acontece um processo de evolução muito claro, e a personagem afirma: “O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim (...) Como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida. A vida se me é, se me é; eu não entendo o que digo. E então adoro.” Está selada, então, a ressurreição de G.H, que finalmente pode se considerar renascida. A massa branca da barata purificou sua percepção de mundo, e a personagem era agora uma folha em branco. Não era mais uma G.H de apartamento, e sim, uma G.H do mundo.
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