9 de maio de 2008

A Paixão Segundo G.H

Da série: "perder-se também é um caminho"
Um apartamento na cobertura de um prédio. Um quarto de empregada abandonado aos olhos da patroa. Uma mulher presa ao conforto de sua vida. Assim começa “A Paixão Segundo G.H”. O livro nos transporta para os confins do pensamento humano, através do fluxo de (in)consciência da personagem-narradora. Somente duas personagens povoam o livro, mas muitas reflexões povoam o nosso pensamento. G.H é uma mulher como outra qualquer, até o momento em que se depara com o que até então supunha não existir. A partir da demissão da empregada, ela se vê obrigada a limpar o apartamento, função para a qual nunca havia se prestado, mas que despertava o seu interesse, afinal, “limpar é colocar as coisas em ordem” e a organização dava a sensação de segurança de que G.H tanto precisava. A idéia de abrir o quartinho da empregada produzia na mente de G.H as imagens mais sórdidas: julgava encontrar um lugar repleto de traças e tomado pelo mofo. Mas não, o quarto era o recanto de limpeza que G.H julgava existir somente no seu mundo. Ao abrir o guarda-roupa, a calma da personagem é quebrada pela saída de uma barata, que, ligeira, tentava fugir. A partir disso, começa uma enorme viagem pela imaginação da personagem. A barata promoveu a catarse e significou um máximo estado de introspecção. G.H começa o seu processo de encontro consigo mesma, uma espécie de auto-resgate: “Eu procuraria não esquecer que os geólogos já sabem que no fundo do subsolo do Saara há um imenso lago de água potável (...) O deserto tem uma umidade que é preciso encontrar de novo”. G.H nos leva até o seu passado, relatando situações que até então estavam engavetadas em seu pensamento. O aborto de seu filho volta com força total, e a faz reviver a sensação de que estar grávida era como ter um peixe devorando o seu interior. Essa frieza de G.H assusta o leitor, e, no início, projeta-se no modo como a personagem encara a barata. Mas esse distanciamento era, na verdade, alienação, e é dessa constatação que surge em G.H a vontade de transformação. O aparecimento da barata balança os alicerces da vida de G.H, e ameaça derrubar toda a sua segurança, uma vez que a barata simboliza, no livro, a desorganização. “A isso quereria chamar desorganização, e teria segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização, pois não quero me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro (mundo)”. A personagem tinha medo de desviar do caminho que conhecia, tinha medo de relatar o que aconteceu para o leitor, mas demonstra, desde o começo do livro, a capacidade de segurar na mão imaginária do interlocutor, e relatar com detalhes o acontecido.“É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto. “É como se eu tivesse uma moeda, e não soubesse em que país ela vale”. Essa coragem evolui até chegar ao seu ápice. Clarice, através de G.H, nos faz supor a vida em dois planos: o da limpeza, representada pelo conforto do apartamento de G.H, e o da sujeira, representada pela barata e toda a sua significação. A personagem vivia mergulhada em sua rotina de apartamento e café, sem atentar para toda a subversão que existia no mundo. A barata a fez ter contato com a imundície, que, sem ela perceber, a levou para um estado de consciência jamais habitado antes. Nesse trecho do livro – assim como em vários outros - há passagens bíblicas muito emblemáticas e recorrentes que associam a barata ao imundo. O próprio nome do livro, cuja palavra “paixão” também pode ser interpretada como o envolvimento profundo do leitor no mergulho da personagem, é uma alusão explícita à Paixão vivida por Jesus Cristo. O contato com a barata era a sua chaga; a reflexão produzida por ele, sua via-crucis; e o ato de comer o inseto, sua crucificação. A porta do guarda-roupa não se abrira por acaso, e não só o contato visual com a barata se fazia necessário, como também o contato mais profundo: o tátil e o gustativo. A sensação primeira de G.H foi de nojo, de repulsa por aquilo que ela via como a representação do que de mais sujo havia no mundo, e foi esse sentimento o ímpeto de força que fez G.H comprimir o inseto contra a porta; depois, aconteceu a identificação, a sensação de que ela e a barata não eram de todo diferentes. “O que nela é exposto, é o que em mim eu escondo”: essa era a diferença essencial entre ambas as criaturas, mas que, na verdade, tornava-as cada vez mais iguais. G.H, então, passou a nutrir um certo sentimento de compaixão pela barata. Enquanto esta agonizava no limite entre a porta do guarda-roupa e o chão no quarto, G.H estendia toda a sua existência no espaço daquele quarto, e agonizava em seu entendimento de si mesma. “Como eu não sabia o que eu era, então não-ser era a minha maior aproximação da verdade”. Comer a barata seria o seu modo de evasão. Era quase uma obrigação, a partir da qual a personagem poderia entender o gosto daquilo que ignorava: “Até então meus sentidos estavam desligados/mudos para o gosto das coisas”. Todas as obras de Clarice prevêem uma mudança nas personagens principais. Por isso é que “A paixão segundo G.H” não é um romance cíclico. A G.H do final do livro não é a mesma que se deparou com o quarto da empregada. Acontece um processo de evolução muito claro, e a personagem afirma: “O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim (...) Como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida. A vida se me é, se me é; eu não entendo o que digo. E então adoro.” Está selada, então, a ressurreição de G.H, que finalmente pode se considerar renascida. A massa branca da barata purificou sua percepção de mundo, e a personagem era agora uma folha em branco. Não era mais uma G.H de apartamento, e sim, uma G.H do mundo.

Fina massa para paladares refinados



O cenário musical brasileiro nunca esteve tão saboroso. O projeto musical 3 na massa mistura vozes femininas à sonoridades que lembram canções francesas dos anos 60, resultando na mais gostosa promessa musical de 2008.
Assim como o projeto paralelo Orquestra Imperial, formado por músicos em rotação, como Seu Jorge, Rodrigo Amarante e Thalma de Freitas, 3 na massa surpreende pela diversidade de composição e influências diversas. A “massa”, como sugere o nome, é moldada pelas mãos hábeis dos músicos da Nação Zumbi, Pupillo e Sucinto Silva, além do músico paulista Rica Amabis, do grupo Instituto. A intenção era compor uma mistura que desse novo sabor à música pop-eletrônica nacional, abusando de barulhinhos e efeitos sonoros diversos.
O recheio é formado pelas composições de Rodrigo Amarante, Lirinha, Jorge du Peixe e outros. Suas letras salpicam o refinamento das canções. Recheadas de segredos amorosos, frustrações e experiências típicas do universo feminino, elas dão o tom da inocência, mas sem banalizar. Já o tempero fica por conta das participações femininas mais que especiais, que juntam nomes como Thalma de Freitas, Céu, Leandra Leal e Nina Becker, entre tantas outras. Nessa mistura, há ainda um contato intercontinental: Nina Miranda, a vocalista brasileira da indefinível banda inglesa Smoke City, também dá a sua contribuição, na faixa “Morada Boa”.
3 na massa é uma colagem musical; utiliza influências externas, mesclas de hip-hop e jazz, sem negar o encantamento da boa música brasileira. Depois de estrear no My Space, eles lançam seu primeiro cd, "Na confraria das Sedutoras", confundindo qualquer um que possa pensar em colocar rótulos em sua sonoridade. A textura do disco é marcada pelas distorções eletrônicas combinadas com o baixo e a bateria dos músicos da Nação Zumbi. Essa combinação entre o eletrônico e os instrumentos tocados cria uma harmonia sonora digna de se ouvir com os olhos fechados.
O peso dos metais convive perfeitamente com as distorções, como em “Sem Fôlego”, interpretada por Lourdes da Luz, da banda paulista Mamelo Sound System. No início da canção, nos acostumamos com os efeitos eletrônicos; quando de repente, os intrumentos tocados invadem a música, além do vocal marcante e da levada hip-hop, sem que isso cause estranhamento. Neste álbum, o inusitado torna-se comum, e a naturalidade guia a cadência das músicas.
Definir seria limitá-los: 3 na massa transcende os limites da música facilmente cantarolável. A sensualidade das vozes femininas provoca sem vulgarizar. Exemplo perfeito disso é a faixa “Certeza”, cantada pela atriz e cantora Leandra Leal; sua narração em francês nos faz visualizar uma lolita francesa, e é digna de fascínio.
A maior beleza do disco está nas diferenças entre uma faixa e outra; em uma, um molho picante e fervente; em outras, uma sutil pitada de açúcar. Destaque para a inocente “Tatuí”, que na voz de Karine Carvalho lembra uma frustrada paixão adolescente; ou ainda para a sensualidade agressiva de “Pecadora”, embalada pela voz fantasiosa de Simone Spoladore. Há faixas em que a canção adquire tom de narrativa, como em “Certa Noite”, na voz de Alice Braga.
Esses contrastes fazem do disco um delicioso aperitivo para todas as horas. 3 na massa tanto poderia ninar o sono de um bebê, quanto servir de trilha sonora a um lascivo caso de amor. A consistência dessa massa está na criatividade do grupo, que é, antes de tudo, uma conjugação perfeita do paladar musical de cada integrante.

A extrema ousadia embrulha essa mistura sonora em papel especial, e o presente fica para os nossos ouvidos. Nada mais agradável.