7 de dezembro de 2009

Rua do Carmo, nº 17 (parte II)

Só para contrariar a vontade das histórias que são escritas para não serem lidas, foi lida. E foi lida justamente pela pessoa que a protagonizava, também para contrariar a vontade das histórias reais que são escritas com vontade de ser ficção. Cabral, o simpático dono do Sebo mencionado neste post, adivinhou a realidade da minha história. Não costumo escrever em primeira pessoa, justamente para me afastar do que digo, mas esse incidente fez com que eu me rendesse ao comprometimento.

João Cabral Pimenta, personagem de que me apropriei, descobriu, tal qual a figura histórica homônima, a minha história. Ela foi escrita depois de uma viagem a Bahia, no ano passado, por um acaso, assim como eu por acaso a escrevi. Escrevi para marcar os momentos bons que vivi; para relembrar a sensação que tive nas poucas horas em que estive lá e conversei com aquelas pessoas. Cabral-bonachão e doce-Vivi.

O reencontro começou num comentário, misto de surpresa e indignação de Cabral, que me escreveu se defendendo da caracterização que dei a ele: “não sou tão velho como você disse, talvez semi-novo”, disse ele, num recado datado de 8 de março deste ano. Eu, sempre desajeitada, esqueci de avisá-lo do teor da minha história. Ela deveria vir etiquetada, como que alarmando: “esta é uma história real, mas tem alguns detalhes pendurados entre a realidade e a ficção – o que também costumam chamar de imaginação”. Desde então, trocamos e-mails que tentam ignorar a geografia. Eu dizendo que tenho saudades da Bahia, Cabral simplificando tudo me descrevendo o céu azul que faz lá. Eu me lamentando por não ter muitas fotos da loja, Cabral respondendo prontamente com quatro ou cinco fotos que remediam minha nostalgia - como essa, que ilustra este post. São e-mails carinhosos, que mantém o único contato que poderiam ter duas pessoas de Estados diferentes: bendita tecnologia! Pensando bem, parece até irônico, já que Cabral é dono de uma loja que se mantém por nostalgias: dá preço às velharias, perpetua pedacinhos de passado.

Bom saber que eles continuam lá, e que o lugar significa, dia após dia, a possibilidade de que outra pessoa saia dele fascinada, como eu saí. Fascinada não pelo fato de que aquelas quatro paredes desafiam as leis da Física ao tentar fazer caber o mundo dentro de um espaço muito pequeno; nem porque ele vende raridades e artigos inusitados; tampouco porque ele contraria a lógica econômica ao vender preciosidades a preço de banana, mas pela tranqüilidade que paira ali, quietinha, entre quinquilharias e muito pó. Concordando com Eduardo Galeano, as lembranças que me assaltaram nesse reencontro, ainda que virtual, com Cabral, me convenceram de que recordar é mesmo “tornar a passar pelo coração”. A Cabral e Vivi, deixo um enorme beijo e a promessa de um reencontro que, ao contrário da minha história, tem toda a pretensão de ser de verdade.

Foto: uma das relíquias da loja: caixa de fotos 3x4 perdidas. créditos: Cabral

23 de novembro de 2009

Entre parênteses

 

Essa coisa de ser como árvore me incomoda. Já dizia Eça de Queiroz que "a vida é essencialmente vontade e movimento". Não sou árvore, não quero ser árvore, mas preciso ser, e confesso que sou. Preciso de minhas raízes, se saber onde eu começo para entender onde eu termino. Preciso me fincar, nem que por pouco tempo: ter meu ancoradouro. Me agrada mais a idéia de ser catavento, que a cada giro mostra uma cor diferente. Mas é preciso ter cautela, saber que até para ser catavento há que se estar submetido a alguma coisa, afinal, é estar totalmente a mercê da vontade do vento. Quero mesmo é ser metade árvore, metade vento. Vento para nunca parar de soprar, e árvore para sempre ter debaixo de onde descansar. - pensava ela debaixo de uma aconchegante árvore, enquanto o vento soprava ligeiro o tédio de uma manhã de terça-feira.

31 de outubro de 2009

"É por dentro!"

Ele mal sabia disfarçar com a polidez de sempre as aflições que irrompiam sua serenidade. Ela, a passos pequenos, sentou-se num lapso de cumplicidade junto dele, joelho a joelho, para escutar o que achou que seriam apenas lamúrias finalmente libertas, ou afliçõezinhas estúpidas que de tão pequenas só sabem apertar, e não fazer doer. Mas elas não vinham, tímidas, com medo do mundo de fora, que poderia ser pior que o de dentro. Continuaram enfurnadas onde não poderiam estar, onde nunca poderiam ter estado. Pensou em assoprar, mas ainda ardia. Os conselhos como bisturis desajeitados querendo vencer os músculos do coração e entrar onde a dor estava para arrancá-la com a brutalidade de um Neandertal. A técnica do band-aid - rápido e indolor - não seria suficiente: era uma polifonia de feridas sussurrando socorro, implorando cura, adivinhando demora; e a mão para puxar o band-aid, uma só, uma e inoperante, só.

Até a palavra, irrequieta, soltou as mãos com fineza e se escondeu, sabendo-se incapaz de continuar: como se verbaliza uma agonia? Lembrou das aulas de Linguística. Recolheu todos os farelos esmigalhados da Teoria dos Atos de Fala com desespero, tentando encontrar algum alento. Ilocução, perlocução: nada o ajudaria a proceder. O problema não era o que dizer, como dizer, com que intencionalidade dizer. O problema era técnico: não havia letra em nosso minguado sistema verbal - e nem em outro qualquer - que pudesse se juntar a outras mais e compor algum discurso que fizesse sentido. Era como querer explicar em palavras o que é um suspiro. A palavra suspiro vai até onde as letras acabam, suas sensações ficam apenas naquele que suspira. Bom seria se elas flutuassem, mostrassem algum molejo, algo que suspirasse, mas letras são só letras, e suspiros são intransferíveis. Ou seja, ele estava sozinho, desamparado: "até tu, Austin?" - os pensamentos diziam. Saber como sair dali também não adiantaria; resultaria numa noite de insônia remoída à exaustão. “Os gestos!”, lembrou deles. Sacanas, se esquivaram todos até sobrar apenas um, encolhido no canto, olhando para o lado e sabendo-se última esperança, último desfecho não-letal daquilo tudo. Ligeiro, o aperto de mão escapou entre os dedos e fugiu. Foi aí que o abraço veio em redenção, num ato solidário que substituiria qualquer discurso. "Um drible, cheio de malandragem, na linguagem" - orgulhava-se, sobretudo da rima. A ação é a única saída para que não se fatiguem as palavras, é um descanso nessa loucura de dizer o tempo todo. Mas no fundo sabia: só há gesticulação em demasia porque faltam palavras para dizer o que precisamos; eis esse mundo desajeitado em que os gestos atropelam, minuto a minuto, infinitas possibilidades de dizer. Aqui, quem tem delicadeza é rei. A única conclusão, meio caduca, ficou enroscada no abraço: muitas de nossas dores fazem parte das pessoas que nós inventamos.

29 de outubro de 2009

Ode tardia

De volta à ficção...

De todas as partes que compõem o curvilíneo contorno feminino, ela é a mais subestimada. Compete com entidades aclamadas da anatomia; as bundas, os seios – até mesmo os ombros, para os admiradores mais polidos – protagonizam com avassaladora indiferença os seus pequenos holocaustos: a batata da perna é uma esquecida. Dotada de feminilidades de donzela, é sensível a grandes esforços, terrenos íngremes e intensos acúmulos de ácido láctico - únicas situações, aliás, em que é minimamente rememorada. Ela não tem poema, não jaz eternizada em nenhum clássico renascentista e nem estocou seus gracejos na memória da música brasileira: não é a coisa mais linda e cheia de graça que desfila a caminho do mar. Nem ao menos presta-se às rimas: nada que seja minimamente refinado rima com batata. Por isso, é consenso que a chamem de panturrilha, nome sisudo, ortodoxo, que nada combina com sua feição desinibida e ainda a suprime de sua mais notável característica: a graça. Ela fica embaixo, onde só os olhares demorados botam reparo, e nem mesmo esses demoram o suficiente para adivinhar algum encanto nesse recôndito sítio anatômico. Atraem olhares o rosto, os ombros, o colo, o dorso, a cintura e as coxas, ainda que não respectivamente, mas a vez da infortuna batata, pobrezinha, nunca chega. Periga ser esquecida para sempre a amargar frustrações junto ao ossudo e desdenhado tornozelo. À exigência implacável dos critérios masculinos, não basta a curvatura desenhada, o sutil sombreamento dos joelhos nas formas bem torneadas; há que ser suscetível de beijos calorosos, e caso não seja, é abandonado. E o mais injusto é que, sem a batata, a perna seria só uma fina estrutura longilínea desprovida de qualquer curvatura, algo muito esquisito, joelho e tornozelo se encontrando em uma linha previsível: sem a batata, não haveria mistério, a perna seria só perna, sem nada para adivinhar. E no entanto, lá está ela, engolindo com seca destreza todas as homenagens negadas, todas as odes suprimidas, toda a fatalidade que lhe coube apenas por ser batata. Vencida até mesmo pelos braços de uma tal de dona Severina, a batata da perna é o ostracismo do corpo.

26 de outubro de 2009

Reportagem - A energia que circula

        De trejeitos amistosos, a ema é considerada a maior ave brasileira. É sempre muito solícita quando tentam alguma aproximação e, apesar de possuir asas enormes, ela não voa. A ema em forma de boneco do Bloco da Ema, grupo carnavalesco do interior de São Paulo, confirma todas essas características, acrescida de uma singularidade: já que não pode voar, pula carnaval sem se importar se é ou não fevereiro. Confeccionada conforme a criatividade de cada ano, ela espera tranqüila pelos passos que irão compor o seu vazio.
       Embalado por alfaias, caixas e ganzás, o batuque do Bloco da Ema transporta para São Paulo as cirandas, o frevo e o maracatu: a cultura nordestina guardada num bloco de rua. Feitas de retalhos de pano e materiais reciclados, as personagens Boi Alado e Cavalo Marinho ajudam a compor o cenário, apertando os foliões que os representam e quase os sufocando no calor de fevereiro.
       A velha história de que “se a montanha não vai a Maomé, Maomé vai até a montanha” não se aplica à vida de Marcos Antonio Azevedo de Souza – o Tony, idealizador do Bloco. Nesse caso, a montanha não foi a Maomé e ele tratou de forjar a sua vinda.
       Nascido em Pernambuco, Tony veio para Piracicaba, interior de São Paulo, em 2002. Passou alguns anos ignorando a distância e enganando a saudade em suas idas para Recife. Há sete anos, resolveu vencer a geografia e montar em Piracicaba um pedacinho de sua terra natal: nasceu, assim, o Bloco da Ema. Maomé e montanha continuaram em seus lugares, e a tímida cidade paulistana ganhou uma rota de fuga do carnaval que se vê por aí.
       O Bloco da Ema é o ponto de convergência dos vários públicos de Piracicaba. Todo fevereiro, centenas de pessoas se reúnem para compartilhar o saudosismo de outros carnavais – aqueles mais ingênuos, de fantasias, sapatilhas e confetes. O Bloco da Ema é cheio de nostalgia, mas não daquelas encharcadas de sentimentalismo, e sim das que querem trazer de volta ao coração as lembranças de tempos que não voltam mais.
       Quando chegou, Tony, muito cauteloso, achou que seria injusto trazer Pernambuco para a cidade sem criar um elo entre os dois. Foi aí que ele vasculhou a cultura piracicabana até encontrar a tão necessária familiaridade. O batuque de umbigada, o samba-de-lenço e a Congada do Divino, se tornaram o gancho perfeito de que o artista precisava. Tony pegou a cultura pernambucana por uma mão, a de Piracicaba pela outra, e juntou as duas numa mesma ciranda. “É uma cultura muito rica, e os próprios moradores não se dão conta”, indigna-se Tony. Foi preciso essa certeza vir de fora para se tornar óbvia. Às vezes, só observando as coisas com olhar de turista é possível algum deslumbre sobre o que se vê todos os dias.
       Ele chegou à cidade como artista plástico, mas foi como músico que ele permaneceu. Curiosamente, para ele, aquele era um momento de deixar a música de lado e focar nas artes. De início, começou a trabalhar na montagem e monitoramento do Salão de Belas Artes de Piracicaba. Mais tarde, apenas, é que ele se reconciliou com a música. Tentando justificar-se, Tony relembra seu pensamento da época: “Já tem tanta gente fazendo; o que eu posso fazer que seja realmente novo?”. Por sorte, não demorou muito para que ele descobrisse na música o poder de transformação presente nas artes plásticas. “Sou muito ligado nessa coisa da mudança. Eu olho para uma obra e penso ‘a tinta e a madeira se transformaram nisso, que é abstrato, se existe é porque eu criei”, conta, extasiado. “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”, é a frase que ilustra o folder de uma de suas exposições.
       Foi dessa fonte cheia de bons intentos que emergiu o Bloco da Ema. O transporte imaginário de Pernambuco para Piracicaba demandava energia, que deveria ser compensada pelas características afins entre os dois. “No começo, disseram que eu era doido, que esse não era o jeito de o piracicabano pular carnaval”. Assim mesmo, não temendo assustar ninguém por saber-se inofensivo, o Bloco da Ema desfilou em seu primeiro ano com minguados acompanhantes, num cortejo de maracatu e marchinhas, que, se não gerou muita repercussão, ao menos inseriu o nome da Ema no circuito cultural da cidade.
       Mas não é esse anseio de nostalgia que vai fazer com que o carnaval dos funks e trios elétricos perca seu fôlego. Todo ano, atulhado de letras eróticas e foliões ousados, o carnaval se manifesta das mais diferentes maneiras em todos os cantos do país. Seja sob a forma de bonecos nas ruas de Olinda ou de trancinhas no cabelo da mais recente revelação baiana, o carnaval pula. Por isso, o folclore de Pernambuco trazido por Tony para São Paulo é só mais uma peça da engrenagem que move o carnaval, que não anula as maneiras já existentes de festejá-lo, mas com elas pacificamente coexiste.
       A Recife improvisada de Tony é menor, sem grandes pretensões e não tem mar com que se possa sincronizar a cadência do carnaval, mas não economiza ritmos para colorir os dias de folia. Durante o desfile do Bloco da Ema, o que se vê de longe é um aglomerado de pontinhos coloridos saltitando no mesmo tom. Crianças, jovens e idosos unidos num mesmo denominador comum: a festa. Dizer isso não implica afirmar que o carnaval provoca o milagre da homogeneização, em que diferenças sociais são dissolvidas sob a benção das serpentinas, nem tampouco elevar o carnaval à condição de afirmativo do moribundo ufanismo brasileiro. A contemplação da cena é o lembrete de que as culturas conversam, discutem e se multiplicam, criando formas híbridas de si mesmas.
       No tradicional trajeto do Bloco da Ema, que passeia entre os pontos turísticos de Piracicaba, como a Rua do Porto e o Largo dos Pescadores, muitas pessoas se deixam contaminar pela alegria, deixando confuso quem tentar descobrir o que é bloco e o que é público. Como que lembrando silenciosamente a cantiga de Lia de Itamaracá, ilustre cirandeira pernambucana, o Bloco funciona por pressupostos de companheirismo: “essa ciranda não é minha só/ ela é todos nós/ela é de todos nós”. A Ema, simpática e dançante, responde com acenos aos que espiam nas janelas das ruas por onde passa; alguns deles, ela sabe, nunca serão cativados.
       No mesmo fevereiro, milhões de pessoas se acotovelam para contemplar a festa do Galo da Madrugada, em Pernambuco. Todo sábado de carnaval, lá está ele, imponente, a atrair atenções exclusivas. Em 2009, o Galo da Madrugada mobilizou mais de 2 milhões de pessoas no carnaval pernambucano. Considerado o maior do mundo pelo Guiness Book, o Galo da Madrugada deixaria qualquer ema envergonhada, mas a exemplo de seu garboso hino, a Ema, essa com letra maiúscula, “também é de briga” e “está na rua, saudando o carnaval”. Enquanto isso, numa São Paulo de tecnologias globalizantes e apressadas, pouco propícia para regionalismos saudosos, Tony continua a conduzir seu Bloco, imerso em sua Recife de festim.


O fogo e outras interrogações
       É julho e o frio se instala soberano pela cidade de Piracicaba. Prova disso é a neblina que esbranquiça o caminho até a casa do entrevistado. No calendário, sete meses separam esse mês frio da quentura acolhedora de fevereiro e suas festividades carnavalescas. No ateliê de Tony Azevedo, no entanto, não existe calendário: o carnaval fica espalhado ali pelo ano inteiro.
       É lá que Tony vive e trabalha. Mora com a mulher, Camila Daniele dos Santos, fotógrafa, artista plástica e “parceira, em todos os sentidos”. Desde que ele deixou Pernambuco, são elas – Camila e casa – que acomodam sua paixão pela arte. Pela sala, uma bagunça muito organizada de instrumentos, telas, cartazes e fotografias, que poderia contar sozinha toda a história da cultura pernambucana.
       Quando questionado sobre a formação do Bloco da Ema, o olhar de Tony fica embaralhado. Firme nos tais pressupostos de companheirismo, ele responde: “O que nós temos são colaboradores, pessoas que se identificaram com a idéia e não deixam ela morrer ”. Só então, como que encontrando a resposta exata para a questão, Tony encerra: “é tudo uma energia que circula”.        Por isso é que o Bloco da Ema é apenas uma ponta do fio que liga a cultura pernambucana a de Piracicaba. O Grupo Erê e o Porto Maracatu, ambos grupos de música nordestina, são ramificações do Bloco e, como ele, querem manter vivo o folclore do Nordeste que o tempo ou a malvada geografia ameaçam extinguir.
Assim como o de Tony, o olhar de Camila também se embaralha quando tenta explicar o que é a tal “energia que circula”. Camila faz a curadoria das exposições de Tony, fotografa as apresentações do Bloco da Ema, pinta, costura estandartes e ajuda a confeccionar os bonecos. Mas, ainda assim, responde, humilde: “acho que tudo aconteceu mesmo pela vontade que o Tony transmite, de querer fazer com que dê certo.”        Experimental que é, o Bloco da Ema precisa ser vivido para ser compreendido. O desfecho da questão, no entanto, ficou escondido em outra declamação de Camila: “Talvez nem mesmo aos que conhecem o trabalho de perto seja dado o vislumbre de uma resposta aceitável, já que ele mesmo não se dá ao trabalho de se explicar”. Dizem que para entender o que é o fogo, há que se entrar na chama e se misturar com ele.
       É exatamente a mistura que fascina Tony. Tanto na música, quanto na arte, tudo o que é passível de transformação vira massa de modelar nas mãos do pernambucano. Mas ele aconselha: “é preciso saber colocar a inspiração no material adequado”. Tony é um homem atento a contenções, sabe que até mesmo o desperdício de criatividade pode prejudicar o equilíbrio do mundo.
       Em tempos pouco afeitos a ilustres anônimos, Tony finca o pé no que faz, estendendo o olhar para o futuro. Colocando-se inteiro em tudo o que faz, cuida do Bloco da Ema com um carinho aparente: a cada apresentação, é como se o carregasse no colo. Com orgulho de pai, revela, quase segredando, as idéias do Bloco para o próximo fevereiro: “um circo e uma Ema gigante, de 10 metros”. Vai ver que o poeta Maiakovski estava certo ao dizer que “cada um, ao nascer, traz sua dose de amor”.

10 de agosto de 2009

Sobre perfeições e laranjas

“Vai ficar me olhando por quanto tempo? Que aí eu posso calcular quanto vou cobrar” – disse-me a Rita, faceira, na primeira vez em que eu a vi. Os olhos eram de um verde amendoado levemente acinzentado que eu nunca tinha visto; eram grandes e pareciam interessados em tudo, porque arregalavam ao limite, sem nenhum esforço; mas não olhavam para mim, olhavam para a mesa 17 do boteco Santa Luiza, esquina de assombros de boemia desregrada que não costumava receber tão belas criaturas. Ela disse aquilo e fez um movimento brusco para o lado, que chacoalhou o ar ao redor e me jogou um pouco do cheiro de banho que ela tinha. Hesitei por dois minutos de agonia que me subtraíram dois séculos e respondi, firme, à sua pergunta: “45 minutos só, pode ser?” – esbocei aquele sorriso de vender creme dental e mudei o chiclete de lado, fingindo descontração. Foram exatos três segundos e meio de uma expressão indefinida até que ela, rendida, sorrisse também. A redenção abriu o caminho em que estou até hoje. Rita e eu vivemos há 25 anos naquilo que, se não for amor, não sei do que posso chamar. É certo que meu bigode já não me cai bem em conjunto com a calça xadrez. E nem o meu cabelo tem o desprendimento necessário para se deixar cair aos ombros. Já não cabe aquela encenação quase shakespereana em que nos lançávamos para fingir desinteresse, sempre que havia muito dele. Sob outros e estranhamente inabaláveis alicerces é que se sustenta a nossa relação. Sinto-me acastelado num amontoado de nuvens brancas e plácidas, onde tudo é segurança e desconcertante perfeição. Agora que os olhos de Rita, vencidos pela passagem do tempo, já não parecem tão grandes, nem tão esverdeadamente amendoados, eu poderia fazer disso belas razões para não querer mais essa vida; criar válvulas de escape mentais para fugir dessa monotonia disfarçada de amor sereno e dizer que estraguei anos de minha vida, que eu quis morrer, que tive meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não fazia o meu gênero! Mas nem ao menos argumentos convincentes e suficientemente negativos eu tenho para querer fugir. “O mal dos aviões é que não se pode descer a toda hora para comprar laranjas”, eu me consolo, lembrando Mario Quintana, enquanto saio momentaneamente de meu castelo para comprar laranjas. * conto escrito para o concurso Encaixe, da Revista Piauí * ilustração por Eduardo Recife

23 de julho de 2009

O menino-suéter: uma história para ser levada a sério com a mais fina das ironias

Era janeiro quando o destino resolveu gargalhar sobre a calmaria de uma família – paradoxalmente, no céu azul-de-doer, o sol cintilava grandes raios de luz por cima daquela insípida manhã de primavera. Os meninos brincavam tranqüilos num pequeno vilarejo de West Virginia, enquanto seus pais trabalhavam para que leite novo pudesse substituir o que já azedava na geladeira. Matt tinha sete anos, disposição de cinco, e naquela tarde distraía-se com os brinquedos de madeira confeccionados pelo avô, que adorava entreter a molecada. Muitos foram os avisos de sua mãe para que ele não ultrapassasse a cerca que separava a fazenda da estrada de asfalto, mas Matt, investido de toda sua astúcia pueril, seguiu em frente cavalgando na madeira em forma de cavalo. Foram dois milésimos de segundo de implacável agonia que marcaram aqueles instantes da vida de Matt. O caminhão seguiu impedioso seu caminho e acertou o menino. Matt era só poeira,fagulhas e destroços: migalhas de um garoto feliz cujo resto era apenas um suéter verde-oliva.

Mas o acidente arrancou somente os membros de Matt, nunca sua vivacidade. Não havia somente fios naquela silhueta juvenil: por trás daquelas fibras e de toda aquela lã, ainda batia um coração. O mundo, porém, não estava pronto para o novo Matt. Na escola, todos o olhavam como se a malha caminhasse sozinha, ignorando a presença ou os sentimentos do incipiente rapaz. Os vizinhos já não o cumprimentavam mais; os colegas deixaram de convidá-lo para as velhas artimanhas de rua; até mesmo suas inocentes paqueras passaram a se afastar, alegando que ele andava esquisito e cheirava a poeira; Matt passou a viver sozinho, chacoalhando-se pelas ruas e se divertindo como podia – como nos dias de chuva, quando as gotas o encharcavam todo e ele podia se torcer, espirrando água para todo lado.

Os pais, apesar do pouco dinheiro e do escasso tempo livre do trabalho, eram só gentilezas: substituíram o shampoo neutro pelo amaciante mais suave, aroma de flores do campo; deixavam Matt secar ao sol por um tempo razoável, sempre preocupados com o perigo de o filho encolher; a qualquer sinal de machucados, linha e agulha erram arrebatadas às pressas do kit de emergência recém-providenciado da mãe. Matt, apesar do que a sua etiqueta indicava, não era muito resistente. O ar seco impregnava poeira em seus poros viscosos, provocando acessos de alergia, ao passo que o clima úmido o gripava facilmente, além de desbotar suas cores, ameaçando anemias inconvenientes. O pai, marinheiro de primeira viagem de filhos feitos de lã, já sacava o ferro de passar roupas ao mais ínfimo vestígio de resfriado, fazendo compressas quentes e massageando longamente o corpo macio do filho, resultando em noites e noites de febres intermináveis. Mas o garoto nem se importava: vivia saltitando e praticando molecagens – como na vez em que se escondeu na gaveta enquanto a mãe enlouquecia à sua procura – desse dia, nunca mais vai esquecer: “três horas pendurado no varal, na sombra, para pensar no que fez”. Matt não gostava do varal, e prendedores de roupa lhe causavam arrepios.

Apesar do comportamento temperamental, era uma criança muito doce. Inclinada a demonstrações contínuas de afeto, enrolava-se como um cachecol nas pessoas que abraçava. Ele era um misto de ternura, aloe vera e fibras 100% algodão: um menino adorável, que logo passou a gostar de sua nova condição. Nos dias de muito frio, Matt infla o peito fibroso e sai, confiante, sem maiores preocupações, enquanto os outros estremecem os dentes no sereno. Gosta especialmente dos dias de ventania, quando as roupas do varal se agitam e parecem acenos. Em seus rabiscos, desenha a família toda soltando pipa no quintal em aprazíveis manhãs de outono, e tudo e todos são feitos como ele.

14 de junho de 2009

Estar debaixo de um edredon

Meu "capítulo imaginário" do livro "O primeiro gole da cerveja e outros minúsculos prazeres", de Philippe Delerm
No momento exato em que nos embolotamos debaixo de um edredon, sabemos que nenhum outro lugar seria tão receptivo a nossa necessidade de calor: qualquer ambiente que não a cama, nesse único instante, torna-se inóspito. O primeiro ato é o de chacoalhar: avidamente nos esprememos em nós mesmos na busca da melhor posição, e quando a achamos, percebemos que ainda está frio. O edredon jogado sobre a cama não basta para que ela esqueça os momentos que passou sozinha, sob efeito dos ventos lancinantes que entravam impunes pela janela. Por isso, a cama demora a sensibilizar-se com o nosso pequeno drama, e leva um tempo até que saiba ler nas entrelinhas dos nossos lábios trêmulos a urgência de calor. Viramos, reviramos e esfregamos o corpo naquela superfície até então inabitada, até que a temperatura se entregue, desarmada, ao poder do atrito: encontramos, enfim, algum alento. É aí que o edredon pode exibir, triunfal, toda a sua eficiência. Além disso, por ser versátil, ele se permite levar até o sofá e até mesmo conviver em harmonia com a pipoca que inevitavelmente cairá sobre ele. Edredons são oásis de calmaria e serenidade que se opõem ao caos, ao frio, ao vento e às grandes tempestades: tudo isso se anula debaixo de um edredon, e todas as coisas adquirem de repente uma calma inexplicável. Estar debaixo de um edredon é contagiante, banaliza suficientemente a vida para que estar ali se revista de uma importância que não conhecerão nem mesmo as coisas mais importantes. Estar ali é simples, como deve ser tudo aquilo que insiste em se sujar de complexidade. Diferente dos cobertores e mantas, ele é conciso, objetivo, sensato. Seu poder não depende nem de pêlos, nem de franjas: o edredon é apenas um amontoado de náilon e algodão recheado de algum volume espumoso e acolchoado no intuito único de consolar um corpo gelado. Não provoca espirros, alergias, coceiras ou rinite aguda: apenas conforto. É, como a música, “calor que provoca arrepio”.Mas, inexplicavelmente, não é nesse espaço de doçura candente que as pessoas passam o maior tempo. Bares, restaurantes, botecos e outros impiedosos ambientes ao ar livre descaradamente roubam a presença das pessoas, apenas porque é nesses meios que se exerce a sociabilidade. O edredon, porém, sabe de seu valor,e apenas espera enquanto aquele que o renegou está em qualquer lugar batendo os dentes, esfregando as mãos e soprando nelas pequenos jatos de ar quente para aliviar o frio, dando pulinhos de agonia gélida enquanto procura as chaves do portão de casa. Sempre muito solícito, ele recebe com gentileza em seus braços o filho pródigo: mais uma vez se inicia o movimento pela misericórdia da cama fria, enquanto o edredon jaz tranqüilo sobre aquele corpo desamparado. A possibilidade de estar debaixo de um edredon é como um cais a que se pode continuamente retornar: é sempre nele que ancoramos nossos corpos naqueles fugazes instantes em que só um abraço quente pode resolver nossas pequenas angústias.

1 de junho de 2009

da série "Pormenores urbanos".

Murais sempre me surpreendem, ainda que só olhe para eles como quem quer descansar os olhos da função maçante de olhar apenas para frente: a velha tirania do “olhe para frente de cabeça erguida”. Olho para o lado apenas, e encontro um mundo de possibilidades a me tentarem. Um mural, qualquer que seja, é uma grande via de sedução com conotação quase sexual. Diferentes papéis, fontes e cores se estapeiam por um minuto do olhar dos transeuntes, numa luta que, bem sabemos, só será ganha quando alguém se render aos encantos de algum aviso e parar para analisá-lo longamente. Os cartazes grifados a cores gritantes, os post-it desperdiçados à exaustão, a disputa muda pelo mais atrativo comunicado, pelo canto superior esquerdo, pela cola invencível ou por uma taxinha minimamente eficaz. Os murais são dóceis, aceitam qualquer coisa que se queira colocar. O pedido misericordioso de uma mãe que perdeu o filho, um aviso de liquidação de móveis velhos, a mudança de data do próximo encontro dos Alcoólicos Anônimos, profecias sobre a volta de Jesus Cristo e até mesmo o aviso de que, cordialmente e em letras garrafais, “troca-se um fogão velho por uma bola de capotão” (mural na moradia da Unicamp, 2006).

9 de abril de 2009

Metades

Nascida em 1988, numa daquelas manhãs de abril em que tudo parece quieto demais, era uma menina feliz. Acostumada desde cedo à calmaria da cidade onde nasceu, sabia que o mundo era maior. Era inclinada às pessoas, muitas delas, mas não todas – tinha especial apreço pela tia Dirce, uma agradável mistura de cabelos brancos e bondade que tomava conta dela em alguns sábados de festa de seus pais, ainda que não houvesse muito do que tomar conta. Sempre fora quieta, pelo menos nessas circunstâncias, sem a mãe por perto para frear sua euforia. Nos outros momentos, viva pendurada em árvores, deslizando em patins e correndo impunemente entre os meninos da rua. Tinha medo da Rifocina à que a mãe a submetia depois de ralar os joelhos no asfalto quente e, em hipótese alguma, enfrentava o escuro. Ainda que caçula de três filhos, não conseguia atrair as adulações de seus pais, sempre frustrando suas sessões de choro ininterrupto em longas tardes de castigo no quarto. Os pais, muito cuidadosos, espiavam vez ou outra para checar o cumprimento da penitência, mas que tal atitude era só pretexto para levar-lhe um copo de leite com chocolate batido, isso ela já sabia. Criada em família de comercial de margarina, desacostumou-se às asperezas da vida. Como adivinharia Lya Luft anos mais tarde, não sabia se livrar do monstro metade infantil metade adulto que nos faz achar absurdo que pessoas e paixões morram. Assim, amargou num choro sofrido e desacreditado a morte da única avó, Antonia. A maturidade só veio depois. Teimou em escrever a partir do dia em que ganhou um concurso de redação do colégio por duas vezes seguidas e pôde comprar um patinete. Absurdo dos absurdos, de ex-aspirante a astronauta, tornou-se potencial jornalista. Iniciou suas leituras por teimosia, por não saber querer outra coisa. Espantava-se com a complexidade do que não podia entender, mas não desistia sem tentar, e deve a J.D. Salinger os primeiros palavrões que aprendeu – e que logo aplicaria sem nenhum pudor. Nasceu no interior de São Paulo, numa cidade que ainda vivia intensamente as serestas regadas a sambas nostálgicos, comia pipoca na praça e ia ao zoológico rir dos macacos aos domingos: uma cidade infanto-juvenil, que não conhecia a malícia. Mas, inevitavelmente, cresceram: ela e a cidade. Muitos meses de abril se passaram, o Sol subiu e desceu muitas vezes, as vontades guinaram revoltas na direção adulta – ainda que o medo da Rifocina continuasse ao seu lado – para que ela se tornasse o que é. E é, em linhas gerais, uma ariana fervorosa e verborrágica inconseqüente, feita inteiramente de sonhos e medos. De menina ossuda e desconjuntada para a atual estrutura longilínea, volúvel e inquieta que conhecemos hoje, passou num susto. Hoje, sorri com todos os dentes sempre que pode, ainda que se entregue, destemida, às mais apavorantes crises existenciais. Inocente incurável, ainda que sutilmente apreensiva, vive longe da cidade que a viu crescer, dos pais, irmãos e cachorros, talvez pelo desejo de liberdade ou pela necessidade de lidar com o medo do mundo (depois de um tempo, já não se sabe mais). Sempre mergulhada até as orelhas no presente, vive em descompasso entre o que é e o que ainda poderá ser. Com apenas 20 anos, só por capricho ou obstinação, periga chegar até os 115, só para ver no que vai dar. Possivelmente, em sua lápide, se houver uma, o lembrete sutil: “aqui jaz Renata Penzani: atordoada com a gravidade da vida, morreu de tanto viver”.

26 de fevereiro de 2009

Felício

"Como a rua pode ser vazia quando não carrega amor”, pensava a doce Lena, carregando uma sacola, as chaves de casa e alguns pensamentos sobre como já havia movimentado aquela mesma rua quando era menina. “Bobagem!”, despistava a tristeza. Há anos ela repete o mesmo ritual. Todas as manhãs, ela vai até o mercado, e rodopia entre as filas de prateleiras e procura para o marido algo fresco e algo doce, nem sempre nessa mesma ordem. Felício, o marido, só um tanto mais velho do que ela, já não podia convencer as pernas e o corpo todo de que sua curiosidade pelo mundo ainda persistia, e ficava na sala, olhando para a tevê, mastigando qualquer coisa e apertando a bolinha da fisioterapia, entre remédios para a pressão e carinhos do gato. Não tinha doença nenhuma, apenas velhice e um pouco de preguiça. Lena entrou, pendurou as chaves na parede e foi logo preparar o queijo com goiabada para o marido. Da cozinha, ecoavam seus berros - Véio, cafezim? – o gato aparecia, ligeiro, bisbilhotando os cheiros que vinham de sua sacola – Vem ver, Leninha, acho que o gato pegou alguma coisa, ô, gato endiabrado. E a vida se passava morna naquela manhã, entre conversas triviais e sussurros do passado na cabeça de Lena. Os talheres tilintavam na mesa do café: o queijo, a goiabada, o café sem açúcar, o pão de leite com geléia de goiaba, e o gato procurando migalhas do banquete. Terminaram e foram para o quarto – haviam criado o hábito de um café reforçado para poder dispensar o almoço, assim antecipavam a pestana e as palavras cruzadas. Felício estava sentado, apoiado em dois travesseiros muito grandes, tentando ajeitá-los às curvas de suas costas. As palavras cruzadas no colo, a caneta caída no chão – Sai pra lá, gato! – e Leninha ao lado, ensaiando as primeiras palavras. Lembra daquele dia, véio? Fugíamos para nos encontrar atrás da banca de jornais. Felício, sem parecer dar muita atenção, lutava contra sua coluna e contra o gato para pegar a caneta. Era tão fácil ser irresponsável! E você, com toda lábia, me levava para onde quisesse. Lena olhava para o velho, as mãos inábeis segurando a caneta sobre o livro, um amontoado de resquícios do tempo em que era, sim, fácil ser feliz. Num minuto, ela narrou toda a juventude. O quarto enchia-se, nostálgico, do orgulho que ela sentia por carregar tanto bons momentos. Os bailinhos – como éramos cafonas, meu velho - , os porres, os passeios pela rua de madrugada, a capacidade de esquecer do mundo ao redor sem nenhuma culpa. Falou, sem interrupções - nem mesmo do gato, que mastigava, satisfeitíssimo, um pedaço da tampa da caneta -, de todo aquele tempo em que as vontades dominavam as atitudes, espírito do tempo de sua juventude, contracultura repleta de doces transgressões – ah, os meus vinte anos! A vida roubou de nós, véio. Leninha olhou para o lado, ainda sorrindo pelos pormenores que ia lembrando, e, num anticlímax desolador, ele dormia. Tinha os olhos muito juntos, e da boca soltava um fino fiapo de baba. Seu velho, ali, deitado, misto de passado adormecido e hipertricose auricular, ainda guardava a graça de tempos mais leves. Amava-o ainda. Levantou-se, num súbito de amor platônico. Afastou-se na ponta dos pés e, cuidando para não acordá-lo, ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite.

12 de fevereiro de 2009

Rua do Carmo, nº 17.

O poeta Maiakóvski escreveu: “em algum lugar do mundo, acho que no Brasil, existe um homem feliz”. Acho que o encontrei. Atende por Cabral, tem poucos dentes que escaparam de amarelecer, e tinha sono quando o conheci. Usava uma camiseta de tom indeciso entre o cinza e o bege claro, ocupava-se no conserto de um rádio velho e tinha duas rugas especificamente simpáticas no canto dos olhos. Entre os dedos, sossegava um cigarro, que cairia no próximo assovio de Cabral. A tal da felicidade, que ele tinha, poderia culpar muitas coisas. Um pouco da culpa fica, inevitavelmente, para Vivi, sua mulher: toda sorrisos e gentilezas, dessas que deixam o seu palavrão encabulado, e os seu grossos modos com vergonha de se mostrar. Outro tanto para o fato de que é dono de um dos pedacinhos mais interessantes da Bahia: “Cabral-Descobertas” - compra, vende, troca e encanta. Rua do Carmo, nº 17, Pelourinho, Salvador. O lugar, um pequeno beco que dá caminho a um mundo de quinquilharias e miudezas que poderiam ocupar todo o espaço existente, não fosse pela simpatia com que elas te conquistam. Um boneco Smurf, velho como a pólvora, me olhava com ternura, pendurado em um elástico na parede. Do outro lado, uma prateleira que poderia contar sozinha toda a história dos anos 80: brinquedos, fotografias, cartazes, câmeras, rádios, quadros: pequenos pedaços de história. O lugar todo era tomado de coisas; até para respirar, é melhor que se procure um espaço. Espingardas enferrujadas em posição de mira assustavam os mais incautos, ao que a música dos Mutantes devolvia a calmaria. “Você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina”. Não me espantaria se encontrasse tudo isso por ali mesmo, incluindo a Carolina. A cada curiosidade, levantava-se uma forte onda de poeira e mofo, mas até isso, ali, eram só simpatia. Ali, repousava empoeirada toda a coleção de playmobills, enquanto dois meninos reviravam a caixa de fotografias em cima do balcão. Vivi não se importava, ria e contava como adorava a visita de estudantes. “Quem são esses?”, disse o menino apontando para uma das fotografias da caixa. “São pessoas desconhecidas, fotos que foram ficando, ficando, e hoje ninguém mais lembra de quem são”. “Macabro”, afirmou com uma certa ênfase, deixando a velha caixa em paz. E a música complementava o cenário. “Vivemos na melhor cidade da América do Sul, da América do Sul”. "Lalarilalá", cantarolavam alguns.
De volta a Maiakóvski, no fundo, o resto da culpa pela felicidade é, simplesmente, da Bahia. Não há como ser triste na Bahia. Em São Paulo talvez, Minas Gerais, quem sabe, mas não na Bahia. Ameaçando uma pontinha de descontentamento, mude-se: Aracaju com certeza receberia com mais delicadeza o seu penar. Cabral contava já os seus cinquenta-e-poucos anos, mas talvez pela convivência ininterrupta com as velharias, aparentava mais. Seus olhos pendiam para o lado, convergiam com o nariz e formavam uma imagem que lembrava a de um buldogue, desses boa-praça, rabinho sempre abanando. Com Vivi, o contrário: tinha, obviamente, mais idade, mas algo no seu jeito denunciava uma menina de rabo-de-cavalo saindo para o colégio. Tinha o rosto todo dobrado em marcas de expressão, mas isso não enrijecia sua feição, apenas nos fazia imaginar o que ela estava fazendo enquanto o tempo exercia sua função de passar. Adorável Vivi. Entre os dois, o denominador comum: sorriso de não economizar dentes, e uma habilidade de fazer-nos sentir em casa. “Venha, que eu te mostro o resto”, ouvíamos, sem nem reparar de quem vinha. E Cabral falava, mantendo a familiaridade no tom de voz. Falava aos que apareciam por ali, aos montes, como quem fala a um filho mais novo: uma preocupação sutil que alertava dos perigos do mundo, mas que não escondia a vontade de se juntar na aventura.
Havia, por ali, uma calmaria imune à bagunça dos visitantes, indiferente à poeira que levantava a todo instante e fazia tossir um ou outro, ao gato que passou e derrubou uma estátua. Algo no ar que nos lembrava de que já fomos – e, de alguma maneira, ali, ainda éramos – mais ingênuos. Vivi logo interrompeu o silêncio: “...mas vocês encontraram o que vieram procurar na Bahia?” – dizia aquilo carregando na voz tudo o que podia de afeição, e talvez o olhar por ele só, fosse já uma pergunta. Ela não falava em “procurar”, muito menos em “encontrar”, mas todos entendíamos e respondíamos, com surpresas expressões de contentamento, o que também poderia ser compreendido como um Sim.

6 de janeiro de 2009

Do latim: a estrangeira.

A menina suja e despenteada estava parada entre a calçada e o portão da casa como se ambos já pertencessem a ela. Aparentemente vizinha da parede azul que chamou a sua atenção, ela queria convencer sua imaginação de que o que havia além do muro era bonito e interessante. Já estava ali há muito tempo. Não podiam saber os que acabavam de chegar no carro que ela devorava com os olhos, mas o enorme sorriso de satisfação ao ver alguém finalmente chegando foi quem a dedurou. Lambuzada de sorvete nas mãos e terra nos pés, exibia o sorriso honesto e desdentado a que se referiu Mario Quintana, mesmo que não fizesse uma vaga idéia de quem ele fosse. Velhinho, para ela, só seu avô, que certamente arrancava os cabelos à sua procura. Mal chegaram as pessoas por quem ela esperava e ela já partiu em busca de seu pequeno objetivo.
As crianças são cheias de pequenas metas, a serem cumpridas com o empenho de um navegador a procurar por novas terras. Uma volta no quarteirão calçando patins ganha conotação épica: as crianças constroem diariamente, com suas espadas, cavalos e armaduras de mentira, suas pequenas Ilíadas. Quando querem, trocam o cenário: onde estava a terra, aparece o céu, o cavalo vira tapete e a armadura, um chapéu pontudo com plumas coloridas, engraçado ou intimidante.
A menina falava, sem parar para reparar no que estava dizendo. Sabia que fazia sentido na sua cabeça e não precisava pensar mais sobre isso. As palavras desobedientes pulavam da boca na maior das boas intenções, queriam inocentemente expressar toda a euforia que cabia naqueles aproximados um metro e nove centímetros de pura inocência. "Bárbara, mas meus amigos me chamam de Barba". Ela se antecipava nas suas falas, sem muita articulação, comendo algumas sílabas, e recuperando-as com uma pausa e uma tomada de fôlego. Continuava, destemida, despreocupada, desembestada, a esbanjar seu léxico infantil. Os interlocutores, pobres adultos que nem se sabiam como tais, ouviam a tudo com admiração e certo espanto - como é que a infância de repente se tornou essa vontade de querer adiantar as coisas? - , respondendo como podiam às inúmeras interrogações que vinham de Barba e deles mesmos. "Posso ver a piscina? Posso ver tudo? Posso?". Ela nem se importava em ser atendida ou não, queria apenas falar. Nem sequer esperava pela resposta: dizia alguma coisa e já ia andando, pequeninamente insolente, acelerada, à frente dos três interlocutores que não conseguiam acompanhá-la. Sob uma chuva de especulações e curiosidades dos adultos, o corpinho de Barba saltitava pela casa, certamente lançando mão do plano de invasão que traçou mentalmente enquanto desenhava a rabiscos tortos a planta da casa. As justificativas sobre a impossibilidade de nadar na água cheia de bactérias da piscina ou as recomendações sobre avisar a mãe que estava ali passavam despercebidas. Só respondia a trivialidades como "quem penteou o seu cabelo?" ou "quantos anos você tem?". O ambiente desconhecido a ser desbravado era seu novo brinquedo.
Acabou explorando o corredor, a escada, os arbustos, o cachorro e a água levemente esverdeada da piscina, embora não tenha visto de fato nenhuma dessas coisas. Seus olhos brilhavam como quem olha para um castelo e seus milhares de mistérios. Saiu cheia de si, ostentando o troféu invisível de mais um de seus pequenos combates. Mal reparou nas portas que levavam a novos espaços desconhecidos: estava fortemente convencida de aquilo era tudo. Despediu-se apressada, ocupando-se em apontar seu barquinho e remo para outra direção.

18 de dezembro de 2008

Eu cronico
Tu cronicas Ele crônica (III) O chiclete passeava inquieto entre a língua e o céu da boca, enquanto ela imaginava o que se tornaria aquela noite. O céu acinzentado servindo de teto à avenida iluminada, suja e mal frequentada em que ela se sentia apenas mais uma. Por ali, Catarinas não havia muitas, quanto mais magras, frágeis e mortiças como ela – e logo ela voltava a se sentir especial. Não bastasse a triste constatação da labuta a cumprir, ainda chovia mansamente algumas gotas tímidas, na proporção de um espirro do céu. Impaciente, ela pisava violentamente o asfalto, que ficava marcado a cada alfinetada do seu salto fino; ela esmagava o chão como se soubesse que ele, como muitos que encontraria noite adentro, não se importaria com a sujeição. Aproximou-se da calçada roída de umidade o primeiro carro da noite enquanto a avenida ia se aquietando. Quanto? "Os homens se interessam por números por não saberem lidar com a abstração" - respondia, célebre, lançando mão de toda a sua habilidade vocabular, enquanto sucumbia aos olhares daquele que seria o primeiro cliente da noite. Quase sempre era ignorada em suas falas, que eram ofuscadas pela beleza do seu corpo bem-formado e pelo fato de que, naquele meio, palavras eram apenas números: preço, quantidade, horário, duração. Mesmo assim, fazia questão de exibir o que sabia, ostentando sua bagagem cultural como um troféu. Todo o conteúdo literário dos livros que ela devorava se soltavam como num cuspe: natural e involuntário. Passou da calçada para o carro com a rapidez de quem queria acabar logo com aquilo, mas com a elegância de um membro da nobreza. No caminho, saboreava seus pensamentos enquanto fingia não ouvir as asperezas que vinham do lado do motorista. Pensava em quantos livros poderiam ser seus depois de vencida aquela noite. Todos novinhos, capa dura, cheiro sedutor, edições raríssimas, vindas de muito longe só para satisfazer o que nela havia se tornado um vício. Já no quarto – um ambiente circunférico, com cortinas de veludo, todo revestido de espelhos e de um mau gosto sem igual – ela lamentava o fato de que certamente o idealizador daquele lugar nunca havia ouvido falar do romantismo contido na simplicidade de um cenário bucólico. Já estava sendo esmagada por movimentos bruscos e sem nenhuma criatividade, quando começou a pensar em como as pessoas poderiam achar paradoxal uma moça de fino trato, feito ela, dar-se a essas baixezas da vida; era a primeira vez que lhe ocorria tal pensamento, ela não se importava com as pessoas e seus achismos. Ela, uma prostituta – demi mondeine, preferia – muito letrada, preenchia com livros o que lhe faltava de pudor. Conhecia bem os altos preços de seus objetos de desejo, e também conhecia o pouco talento que tinha para se prestar a outro serviço. O fato é que já estava nessa vida quando experimentou os livros, passar a dedicá-la ao novo prazer descoberto não seria difícil. Quase se perdeu nos devaneios – oh!, exclamou assustada - às vezes, o fingimento era penoso. Trocou de expressão sem esforço, passando num segundo do tédio à excitação. Fingiu um ou dois gemidos amarelos e, já em pé, na janela, acendeu um cigarro. Tinha os cabelos arregalados e o olhar despenteado: estava uma bagunça, por dentro e por fora, mas se encostou à janela enquanto o homem retornava de seu quase-transe. Dava sempre esse tempo para o fechamento dos negócios, os cinco minutos que pareciam durar uma vida. Esboçou um sorriso mal feito e vestiu-se com a pressa de quem está sob ameaça. Contando as notas recebidas, ela descia a rua já sem precisar carregar aquele semblante triste de antes, concentrando seu pensamento: a mais nova tradução de Baudelaire, com a qual já flertava há algum tempo, poderia ser dela. Caminhando a passos largos, logo chegou onde queria. Entrou na livraria mais cara da cidade: recostada à esquina de um bairro aparentemente simples, a construção ostentava grande requinte arquitetônico; Catarina entrou por uma comprida porta de madeira, com penduricalhos de ouro velho, sem conseguir controlar o rosto corado e o coração acelerado. Correu para as prateleiras e namorou longamente aquela imensa quantidade de raridades. Num minuto, já somava em suas mãos o equivalente ao conquistado no quarto das cortinas de veludo e mau gosto sem igual, mas nem percebeu, estava extasiada. Após longas horas de flerte contínuo, deixou a livraria como quem deixa um amigo querido, carregando um pacote pesadíssimo cujo conteúdo incitava arrepios de curiosidade. Gostava principalmente de poemas, e orgulhava-se por ter sido iniciada no gênero por um brasileiro dotado de ares de bom moço: Manuel Bandeira; conheceu-o numa feira de livros no Rio de Janeiro, logo após rodear a estante dos estrangeiros e perceber que havia enjoado da grande maioria; era como se não falasse a língua daqueles que se comunicavam com expressões. Somente depois de instituída sua intimidade com o gênero, é que aprendeu a apreciá-los. Bom vivant, era o que ela se sentia, mesmo sabendo que não era. Voltou para casa. Novo cigarro, longo banho, cama. Encostou a cabeça no travesseiro, que parecia não dar conta daquele peso que sentia, e abriu as páginas de uma de suas aquisições. Uma, duas, seis, vinte, cinquenta-e-sete: as páginas viravam sem que o tempo tivesse importância. O enredo, os personagens, a velocidade dos acontecimentos: tudo a envolvia completamente. E assim se passava. Prostituía-se pelos livros até que, de uma maneira muito estranha, os livros passaram a servir à prostituição. Com tempo, vida e obrigação passaram a falar uma só língua. Não conseguiria frear a segunda, porque dela dependia a primeira. Os livros vinham do dinheiro fácil das noites, deles vinham as muitas histórias devoradas à exaustão, delas, o desejo de sacudir o mundo, imitar a ficção, criar enredos e tornar-se ela própria personagem e, disto tudo, a certeza de que o outro dia poderia ser o que ela quisesse (com isso, ela lembrava da velha história de que cada dia é como uma pipoca quentinha em que o sal é por conta). Era mais ou menos um movimento de contradição tentando se fazer reciprocidade. Isso porque Catarina buscava na vida comum as fantasias e os acontecimentos extraordinários que via na Literatura - o trabalho, naturalmente, passou a pesar o peso desse objetivo. Algumas noites, quase que por delírio, ela desejava, olhos brilhando, ser acometida por um grande drama: um roubo, alguma violência, quem sabe humilhações, só para sentir o gosto da ação, o sangue fervendo nas veias, a vida correndo para alcançar a arte, a verdade querendo ser mentira. Depois sentia-se mal, primeiramente por voltar para casa sem nenhuma grande novidade - nada além da sempre mesma carência dos que pagavam por atenção, da calvície disfarçada com penteados deprimentes, do cheiro do chiclete de menta que amenizava o mau hálito dos que a procuravam – e depois, pela constatação de sua paranóia. Ela queria na vida um pouco mais de ficção e, na ficção, razoáveis porções de realidade. Mas Catarina continuava a menina que se sentia mais uma entre várias na Avenidade suja e mal iluminada. A magra, frágil e mortiça moça não exigia demais, apenas sabia que na vida faltava a urgência da ficção, enquanto esta ia carecendo de realidade. Vivia no limiar entre as duas, não podendo se privar de nenhuma, mas torcendo o tempo todo para que elas se encontrassem num ponto qualquer. “Não há literatura que durma a onça escura”, ela sorriu inesperadamente, lembrando Drummond, enquanto adormecia.