De trejeitos amistosos, a ema é considerada a maior ave brasileira. É sempre muito solícita quando tentam alguma aproximação e, apesar de possuir asas enormes, ela não voa. A ema em forma de boneco do Bloco da Ema, grupo carnavalesco do interior de São Paulo, confirma todas essas características, acrescida de uma singularidade: já que não pode voar, pula carnaval sem se importar se é ou não fevereiro. Confeccionada conforme a criatividade de cada ano, ela espera tranqüila pelos passos que irão compor o seu vazio.
Embalado por alfaias, caixas e ganzás, o batuque do Bloco da Ema transporta para São Paulo as cirandas, o frevo e o maracatu: a cultura nordestina guardada num bloco de rua. Feitas de retalhos de pano e materiais reciclados, as personagens Boi Alado e Cavalo Marinho ajudam a compor o cenário, apertando os foliões que os representam e quase os sufocando no calor de fevereiro.
A velha história de que “se a montanha não vai a Maomé, Maomé vai até a montanha” não se aplica à vida de Marcos Antonio Azevedo de Souza – o Tony, idealizador do Bloco. Nesse caso, a montanha não foi a Maomé e ele tratou de forjar a sua vinda.
Nascido em Pernambuco, Tony veio para Piracicaba, interior de São Paulo, em 2002. Passou alguns anos ignorando a distância e enganando a saudade em suas idas para Recife. Há sete anos, resolveu vencer a geografia e montar em Piracicaba um pedacinho de sua terra natal: nasceu, assim, o Bloco da Ema. Maomé e montanha continuaram em seus lugares, e a tímida cidade paulistana ganhou uma rota de fuga do carnaval que se vê por aí.
O Bloco da Ema é o ponto de convergência dos vários públicos de Piracicaba. Todo fevereiro, centenas de pessoas se reúnem para compartilhar o saudosismo de outros carnavais – aqueles mais ingênuos, de fantasias, sapatilhas e confetes. O Bloco da Ema é cheio de nostalgia, mas não daquelas encharcadas de sentimentalismo, e sim das que querem trazer de volta ao coração as lembranças de tempos que não voltam mais.
Quando chegou, Tony, muito cauteloso, achou que seria injusto trazer Pernambuco para a cidade sem criar um elo entre os dois. Foi aí que ele vasculhou a cultura piracicabana até encontrar a tão necessária familiaridade. O batuque de umbigada, o samba-de-lenço e a Congada do Divino, se tornaram o gancho perfeito de que o artista precisava. Tony pegou a cultura pernambucana por uma mão, a de Piracicaba pela outra, e juntou as duas numa mesma ciranda. “É uma cultura muito rica, e os próprios moradores não se dão conta”, indigna-se Tony. Foi preciso essa certeza vir de fora para se tornar óbvia. Às vezes, só observando as coisas com olhar de turista é possível algum deslumbre sobre o que se vê todos os dias.
Ele chegou à cidade como artista plástico, mas foi como músico que ele permaneceu. Curiosamente, para ele, aquele era um momento de deixar a música de lado e focar nas artes. De início, começou a trabalhar na montagem e monitoramento do Salão de Belas Artes de Piracicaba. Mais tarde, apenas, é que ele se reconciliou com a música. Tentando justificar-se, Tony relembra seu pensamento da época: “Já tem tanta gente fazendo; o que eu posso fazer que seja realmente novo?”. Por sorte, não demorou muito para que ele descobrisse na música o poder de transformação presente nas artes plásticas. “Sou muito ligado nessa coisa da mudança. Eu olho para uma obra e penso ‘a tinta e a madeira se transformaram nisso, que é abstrato, se existe é porque eu criei”, conta, extasiado. “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”, é a frase que ilustra o folder de uma de suas exposições.
Foi dessa fonte cheia de bons intentos que emergiu o Bloco da Ema. O transporte imaginário de Pernambuco para Piracicaba demandava energia, que deveria ser compensada pelas características afins entre os dois. “No começo, disseram que eu era doido, que esse não era o jeito de o piracicabano pular carnaval”. Assim mesmo, não temendo assustar ninguém por saber-se inofensivo, o Bloco da Ema desfilou em seu primeiro ano com minguados acompanhantes, num cortejo de maracatu e marchinhas, que, se não gerou muita repercussão, ao menos inseriu o nome da Ema no circuito cultural da cidade.
Mas não é esse anseio de nostalgia que vai fazer com que o carnaval dos funks e trios elétricos perca seu fôlego. Todo ano, atulhado de letras eróticas e foliões ousados, o carnaval se manifesta das mais diferentes maneiras em todos os cantos do país. Seja sob a forma de bonecos nas ruas de Olinda ou de trancinhas no cabelo da mais recente revelação baiana, o carnaval pula. Por isso, o folclore de Pernambuco trazido por Tony para São Paulo é só mais uma peça da engrenagem que move o carnaval, que não anula as maneiras já existentes de festejá-lo, mas com elas pacificamente coexiste.
A Recife improvisada de Tony é menor, sem grandes pretensões e não tem mar com que se possa sincronizar a cadência do carnaval, mas não economiza ritmos para colorir os dias de folia. Durante o desfile do Bloco da Ema, o que se vê de longe é um aglomerado de pontinhos coloridos saltitando no mesmo tom. Crianças, jovens e idosos unidos num mesmo denominador comum: a festa. Dizer isso não implica afirmar que o carnaval provoca o milagre da homogeneização, em que diferenças sociais são dissolvidas sob a benção das serpentinas, nem tampouco elevar o carnaval à condição de afirmativo do moribundo ufanismo brasileiro. A contemplação da cena é o lembrete de que as culturas conversam, discutem e se multiplicam, criando formas híbridas de si mesmas.
No tradicional trajeto do Bloco da Ema, que passeia entre os pontos turísticos de Piracicaba, como a Rua do Porto e o Largo dos Pescadores, muitas pessoas se deixam contaminar pela alegria, deixando confuso quem tentar descobrir o que é bloco e o que é público. Como que lembrando silenciosamente a cantiga de Lia de Itamaracá, ilustre cirandeira pernambucana, o Bloco funciona por pressupostos de companheirismo: “essa ciranda não é minha só/ ela é todos nós/ela é de todos nós”. A Ema, simpática e dançante, responde com acenos aos que espiam nas janelas das ruas por onde passa; alguns deles, ela sabe, nunca serão cativados.
No mesmo fevereiro, milhões de pessoas se acotovelam para contemplar a festa do Galo da Madrugada, em Pernambuco. Todo sábado de carnaval, lá está ele, imponente, a atrair atenções exclusivas. Em 2009, o Galo da Madrugada mobilizou mais de 2 milhões de pessoas no carnaval pernambucano. Considerado o maior do mundo pelo Guiness Book, o Galo da Madrugada deixaria qualquer ema envergonhada, mas a exemplo de seu garboso hino, a Ema, essa com letra maiúscula, “também é de briga” e “está na rua, saudando o carnaval”. Enquanto isso, numa São Paulo de tecnologias globalizantes e apressadas, pouco propícia para regionalismos saudosos, Tony continua a conduzir seu Bloco, imerso em sua Recife de festim.
O fogo e outras interrogações
É julho e o frio se instala soberano pela cidade de Piracicaba. Prova disso é a neblina que esbranquiça o caminho até a casa do entrevistado. No calendário, sete meses separam esse mês frio da quentura acolhedora de fevereiro e suas festividades carnavalescas. No ateliê de Tony Azevedo, no entanto, não existe calendário: o carnaval fica espalhado ali pelo ano inteiro.
É lá que Tony vive e trabalha. Mora com a mulher, Camila Daniele dos Santos, fotógrafa, artista plástica e “parceira, em todos os sentidos”. Desde que ele deixou Pernambuco, são elas – Camila e casa – que acomodam sua paixão pela arte. Pela sala, uma bagunça muito organizada de instrumentos, telas, cartazes e fotografias, que poderia contar sozinha toda a história da cultura pernambucana.
Quando questionado sobre a formação do Bloco da Ema, o olhar de Tony fica embaralhado. Firme nos tais pressupostos de companheirismo, ele responde: “O que nós temos são colaboradores, pessoas que se identificaram com a idéia e não deixam ela morrer ”. Só então, como que encontrando a resposta exata para a questão, Tony encerra: “é tudo uma energia que circula”.
Por isso é que o Bloco da Ema é apenas uma ponta do fio que liga a cultura pernambucana a de Piracicaba. O Grupo Erê e o Porto Maracatu, ambos grupos de música nordestina, são ramificações do Bloco e, como ele, querem manter vivo o folclore do Nordeste que o tempo ou a malvada geografia ameaçam extinguir.
Assim como o de Tony, o olhar de Camila também se embaralha quando tenta explicar o que é a tal “energia que circula”. Camila faz a curadoria das exposições de Tony, fotografa as apresentações do Bloco da Ema, pinta, costura estandartes e ajuda a confeccionar os bonecos. Mas, ainda assim, responde, humilde: “acho que tudo aconteceu mesmo pela vontade que o Tony transmite, de querer fazer com que dê certo.”
Experimental que é, o Bloco da Ema precisa ser vivido para ser compreendido. O desfecho da questão, no entanto, ficou escondido em outra declamação de Camila: “Talvez nem mesmo aos que conhecem o trabalho de perto seja dado o vislumbre de uma resposta aceitável, já que ele mesmo não se dá ao trabalho de se explicar”. Dizem que para entender o que é o fogo, há que se entrar na chama e se misturar com ele.
É exatamente a mistura que fascina Tony. Tanto na música, quanto na arte, tudo o que é passível de transformação vira massa de modelar nas mãos do pernambucano. Mas ele aconselha: “é preciso saber colocar a inspiração no material adequado”. Tony é um homem atento a contenções, sabe que até mesmo o desperdício de criatividade pode prejudicar o equilíbrio do mundo.
Em tempos pouco afeitos a ilustres anônimos, Tony finca o pé no que faz, estendendo o olhar para o futuro. Colocando-se inteiro em tudo o que faz, cuida do Bloco da Ema com um carinho aparente: a cada apresentação, é como se o carregasse no colo. Com orgulho de pai, revela, quase segredando, as idéias do Bloco para o próximo fevereiro: “um circo e uma Ema gigante, de 10 metros”. Vai ver que o poeta Maiakovski estava certo ao dizer que “cada um, ao nascer, traz sua dose de amor”.