“Vai ficar me olhando por quanto tempo? Que aí eu posso calcular quanto vou cobrar” – disse-me a Rita, faceira, na primeira vez em que eu a vi. Os olhos eram de um verde amendoado levemente acinzentado que eu nunca tinha visto; eram grandes e pareciam interessados em tudo, porque arregalavam ao limite, sem nenhum esforço; mas não olhavam para mim, olhavam para a mesa 17 do boteco Santa Luiza, esquina de assombros de boemia desregrada que não costumava receber tão belas criaturas. Ela disse aquilo e fez um movimento brusco para o lado, que chacoalhou o ar ao redor e me jogou um pouco do cheiro de banho que ela tinha. Hesitei por dois minutos de agonia que me subtraíram dois séculos e respondi, firme, à sua pergunta: “45 minutos só, pode ser?” – esbocei aquele sorriso de vender creme dental e mudei o chiclete de lado, fingindo descontração. Foram exatos três segundos e meio de uma expressão indefinida até que ela, rendida, sorrisse também.
A redenção abriu o caminho em que estou até hoje. Rita e eu vivemos há 25 anos naquilo que, se não for amor, não sei do que posso chamar. É certo que meu bigode já não me cai bem em conjunto com a calça xadrez. E nem o meu cabelo tem o desprendimento necessário para se deixar cair aos ombros. Já não cabe aquela encenação quase shakespereana em que nos lançávamos para fingir desinteresse, sempre que havia muito dele. Sob outros e estranhamente inabaláveis alicerces é que se sustenta a nossa relação. Sinto-me acastelado num amontoado de nuvens brancas e plácidas, onde tudo é segurança e desconcertante perfeição.
Agora que os olhos de Rita, vencidos pela passagem do tempo, já não parecem tão grandes, nem tão esverdeadamente amendoados, eu poderia fazer disso belas razões para não querer mais essa vida; criar válvulas de escape mentais para fugir dessa monotonia disfarçada de amor sereno e dizer que estraguei anos de minha vida, que eu quis morrer, que tive meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não fazia o meu gênero! Mas nem ao menos argumentos convincentes e suficientemente negativos eu tenho para querer fugir. “O mal dos aviões é que não se pode descer a toda hora para comprar laranjas”, eu me consolo, lembrando Mario Quintana, enquanto saio momentaneamente de meu castelo para comprar laranjas.
* conto escrito para o concurso Encaixe, da Revista Piauí
* ilustração por Eduardo Recife
10 de agosto de 2009
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Um comentário:
e não precisa sair pra comprar cigarro. gostei do texto
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