Meu "capítulo imaginário" do livro "O primeiro gole da cerveja e outros minúsculos prazeres", de Philippe Delerm
No momento exato em que nos embolotamos debaixo de um edredon, sabemos que nenhum outro lugar seria tão receptivo a nossa necessidade de calor: qualquer ambiente que não a cama, nesse único instante, torna-se inóspito. O primeiro ato é o de chacoalhar: avidamente nos esprememos em nós mesmos na busca da melhor posição, e quando a achamos, percebemos que ainda está frio. O edredon jogado sobre a cama não basta para que ela esqueça os momentos que passou sozinha, sob efeito dos ventos lancinantes que entravam impunes pela janela. Por isso, a cama demora a sensibilizar-se com o nosso pequeno drama, e leva um tempo até que saiba ler nas entrelinhas dos nossos lábios trêmulos a urgência de calor. Viramos, reviramos e esfregamos o corpo naquela superfície até então inabitada, até que a temperatura se entregue, desarmada, ao poder do atrito: encontramos, enfim, algum alento. É aí que o edredon pode exibir, triunfal, toda a sua eficiência. Além disso, por ser versátil, ele se permite levar até o sofá e até mesmo conviver em harmonia com a pipoca que inevitavelmente cairá sobre ele. Edredons são oásis de calmaria e serenidade que se opõem ao caos, ao frio, ao vento e às grandes tempestades: tudo isso se anula debaixo de um edredon, e todas as coisas adquirem de repente uma calma inexplicável. Estar debaixo de um edredon é contagiante, banaliza suficientemente a vida para que estar ali se revista de uma importância que não conhecerão nem mesmo as coisas mais importantes. Estar ali é simples, como deve ser tudo aquilo que insiste em se sujar de complexidade. Diferente dos cobertores e mantas, ele é conciso, objetivo, sensato. Seu poder não depende nem de pêlos, nem de franjas: o edredon é apenas um amontoado de náilon e algodão recheado de algum volume espumoso e acolchoado no intuito único de consolar um corpo gelado. Não provoca espirros, alergias, coceiras ou rinite aguda: apenas conforto. É, como a música, “calor que provoca arrepio”.Mas, inexplicavelmente, não é nesse espaço de doçura candente que as pessoas passam o maior tempo. Bares, restaurantes, botecos e outros impiedosos ambientes ao ar livre descaradamente roubam a presença das pessoas, apenas porque é nesses meios que se exerce a sociabilidade. O edredon, porém, sabe de seu valor,e apenas espera enquanto aquele que o renegou está em qualquer lugar batendo os dentes, esfregando as mãos e soprando nelas pequenos jatos de ar quente para aliviar o frio, dando pulinhos de agonia gélida enquanto procura as chaves do portão de casa. Sempre muito solícito, ele recebe com gentileza em seus braços o filho pródigo: mais uma vez se inicia o movimento pela misericórdia da cama fria, enquanto o edredon jaz tranqüilo sobre aquele corpo desamparado. A possibilidade de estar debaixo de um edredon é como um cais a que se pode continuamente retornar: é sempre nele que ancoramos nossos corpos naqueles fugazes instantes em que só um abraço quente pode resolver nossas pequenas angústias.
foto: kristine may