29 de junho de 2007

Laurêncio




Eu cronico
Tu cronicas
Ele crônica.

A vida, às vezes, nos ensina com quantos sonhos desperdiçados se faz um rosto triste.
Laurêncio tinha um desses rostos carregados de história, mas que, na verdade, são assim tristes por carecerem de grandes histórias; olhar para Laurêncio era como ver o que acontece quando a vida passa e a gente não se dá conta. Tinha olhos sinceros e sorriso apagado. Os cabelos castanhos mal cortados e raros naquela cabeça esférica lhe conferiam aparência desleixada. Os olhos também eram castanhos, e não se fixavam em nada que fosse realmente digno de ser fitado. Encimando a boca, um castanho bigode recém-cultivado, do qual orgulhava-se feito louco. A pele não era clara, nem morena: era castanha. Laurêncio era um sujeito castanho. Nem feio, nem bonito, e vez ou outra até atraía o olhar de alguma moça que cruzasse com ele na calçada, mas Laurêncio nunca notava; vivia sempre mergulhado em sua própria existência. Laurêncio era mirrado. Era mirrado por opção, não por faltar o que lhe nutrisse. Comia muito devagar e pouco, e isso devia-se ao fato de comer em companhia de si mesmo, fazendo palavras cruzadas ou até mesmo contando os azulejos da parede da cozinha, para não parecer que o silêncio o invadia por inteiro; Laurêncio não sabia que o silêncio trata-se de nós mesmos, só que demais, não sabia que o silêncio é o excesso da gente. Ou talvez soubesse, e por isso mesmo temesse deixar-se silenciar por completo. Laurêncio faltava a si mesmo, e estar em sua própria companhia era, em essência, como estar na companhia de alguém com quem não se tem nada em comum: um estranho. Não tinha assuntos consigo mesmo; os doces sonhos de outrora cresceram e verteram-se em vítimas da realidade nua e crua, a simpatia e o bom humor o haviam abandonado quase que completamente – exceto nas vezes em que se divertia observando os vizinhos sob as lentes de um binóculo velho - , e quanto à juventude, ah, esta já estava há tempos camuflada em seus trajes cinzentos e dentes amarelados, ambos regados a tabaco barato. Conversar consigo mesmo era como travar uma luta sem fim entre o que deveria ter sido no passado e o que era no presente. Laurêncio era justamente o que não deveria ter sido. Assim, preferia rechear os momentos solitários com passatempos vazios, evitando que seu eu frustrado resolvesse lhe questionar. E além do mais, detestava brigas. Laurêncio era um sujeito pacífico, tão nocivo quanto uma borboleta que pousa despretensiosamente no primeiro muro que lhe aparece. Ocupava no mundo nada mais que o espaço de seu próprio corpo, e retirava deste apenas o oxigênio necessário à sobrevivência, e alguns aprendizados, como não poderia deixar de ser.
Era muito curioso, confuso de si e do mundo, mas não lhe apetecia passar mais que cinco minutos digladiando-se com questões de metafísica filosófica; a isto, bastava um copo de tequila e uma tragada num cigarro, para que a confusão mental logo se dissolvesse. Mas, à parte isso, gostava de ler, e mantinha alguns tortos hábitos de leitura.Abominava livros de leitura pesada, densa, estendida. Preferia as histórias em quadrinho baratas de banca de revista, e os versos repletos de lugar-comum contidos em livros de citações, frases e pensamentos. Laurêncio era de fato um homem de frases e pensamentos - alheios, mas ainda assim frases e pensamentos. Sempre que estendia conversa com alguém nos bares ou botecos, acabava logo com a discussão citando um Sartre, um Sócrates, um Shakespeare, este último, aliás, não sabia pronunciar sem que ficasse parecendo uma onomatopéia ou coisa muito estranha. Era um homem pobre de idéias, limitado em seu próprio medo de mergulhar na dificuldade das questões irrespondíveis. Assim, seu raso entendimento era por opção, não por faltar-lhe intelecto. Deixava os que o viam com a impressão de ser ele um homem esclarecido, seguro do que diz, e pleno em sua existência, mas a verdade é que Laurêncio mal conseguia ocupar o espaço de seu apartamento, tamanha a pequenice e solidão que lhe causava olhar para todo aquele espaço inabitado. Nada de dramático, porém, nessa constatação: Laurêncio tentou algumas vezes, estreitar relações com mulheres que encontrava casualmente pela vizinhança, e com algumas efetivamente viveu romancezinhos, mas Laurêncio era brando, plácido, estático, e não encontrou uma só mulher que conseguisse compartilhar dessa ausência de dinamicidade. Cansou de procurar. Viver só era também por opção, não por faltar quem lhe amasse.
Laurêncio vivia para o trabalho - embora o trabalho não vivesse para ele - um emprego na fábrica de papéis nas proximidades de sua casa – o que era muito bom, pois podia ir andando, ter mais tempo para não fazer nada; Laurêncio lidava bem com a linearidade, talvez por ter se acostumado a sempre saber qual seria o próximo passo. Vivia submerso em sua rotina previsível, e nela não havia espaço para novas descobertas, nem cabiam planos repentinos. Contentava-se com o salário no fim do mês, as gratificações que a fábrica lhe dava, e o cigarrinho pousado no cinzeiro no final do expediente. Anulou, mesmo que sem perceber, a aventura da existência, e isso apenas por ser Laurêncio uma peça da engrenagem que move a sociedade, e não por faltar no mundo um sabor que lhe atraísse. Experimentava, quando lhe surgia vontade, um novo sabor de sorvete, o deitar na grama e sair se coçando todo, o sentar-se num banco de praça e ler um bom livro. Mas Laurêncio não se dava a esse luxo nunca por muito tempo, achava difícil conciliar obrigação com prazer, e como era este primeiro que lhe trazia o sustento, ficava mesmo com a obrigação. Acabou tornando-se cinzento, alheio ao seu coração, que falava e Laurêncio nunca dava ouvidos; ser surdo era por opção, não por faltar-lhe os sentidos.
Não se pode dizer que era triste, mas o que vivia também não se pode chamar felicidade. Laurêncio vivia arrastando os dias, e moldando a eles seus passatempos desimportantes. Pode parecer trágico, mas viver essa vida rasa e monocromática era por adequação, e não por faltar-lhe pulsação. Assim era Laurêncio, nome de elemento químico, trinta e sete anos, trinta e sete sonhos desperdiçados, alguns dentes amarelados e apenas uma cômoda satisfação: a urgência de estar vivo.



28 de junho de 2007

O tom sério que essa tal de opinião faz a gente adquirir.


Considerações minhas para o poema "Tempos Modernos", de Brecht.
Abre parênteses para o poema:















"Os tempos modernos não começam de uma vez por todas.

Meu avô já vivia uma época nova
.
Meu neto talvez ainda viva na antiga
.
A carne nova come-se com velhos garfos
.
Época nova não a fizeram os automóveis
Nem os tanques de guerra

Nem os aviões sobre os telhados

Nem os bombardeios.
As novas antenas continuam a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca."
Fecha parênteses. Brecht é lindo.


Assim não caminha a humanidade.
Ao contrário do que afirmavam as mais mórbidas previsões apocalípticas, o século XXI segue seus rumos pelos caminhos da História, tendo como protagonistas duas idéias contrastantes e paradoxais: a modernidade promovida pelos progressos tecnológicos e o avanço dos tempos, e a estagnação do homem, promovida pela manutenção do que há de mais arcaico no quesito humanidade: o impulso predatório.
Ocorreram, nos últimos séculos, descobertas científicas que de tão imponentes intimidaram os mais ferrenhos religiosos; o homem criou as condições para que fossem desvendadas barreiras tecnológicas que pareciam intransponíveis. Enfim, as descobertas, os aprimoramentos e os vertiginosos avanços, que constituem a parte positiva da modernização, têm maximizado a idéia ilusória de “deusificação” do homem, enquanto este se considera o ser supremo e expoente máximo do que há de mais moderno na sociedade. No entanto, a realidade não economiza exemplos que nos mostram o contrário dessa suposta evolução, uma vez que os progressos promovem mudanças apenas na forma; a essência permanece a mesma.

Contrariamente à quebra de barreiras científicas e/ou tecnológicas, o homem contrói barreiras invisíveis que separam a modernidade dos mais genuínos sentimentos humanos: destrói-se o sentido de humanidade em detrimento da ganância e cobiça. Assim, nota-se um descompasso na sociedade atual, em que as tecnologias progridem e o caráter duvidoso do ser humano permanece estático. Um exemplo dessa estagnação de caráter é a guerra no Oriente Médio, na qual países de diferentes etnias e religiões permanecem em constante conflito por “simples” orgulho e intolerância.
É (além de revoltante) assustadoramente triste, que num mundo que goza de todos os recursos necessários para uma qualidade de vida confortável, ainda haja casos de pessoas morrendo por falta de pronto-atendimento e negligência em Instituições de saúde pública que perecem por falta de verba, já que esta é quase sempre desviada para cofres de terceiros. O Brasil, país que carrega em seu histórico um vergonhoso passado escravocrata, aboliu a escravidão, mas não o preconceito, e não-raro vemos negros sendo tratados de maneira coerente com os moldes coloniais, exemplificando a mediocridade do ser humano.
Modernidade sempre existiu, e continuará a existir, ainda que subjetiva e até mesmo incoerente, já que o homem relativiza a modernização. O caráter humano é intrinsicamente mesquinho, ambicioso, materialista, o que não permite que este se enquadre no cenário das mudanças conseqüentes do processo de globalização. Portanto, a constatação que se tem é a de que numa sociedade que se sustenta sobre os mais arcaicos alicerces e se constrói ainda sob moldes coloniais, haverá de ser sempre relativo o conceito de modernidade; o mundo valse-se das mais evoluídas tecnologias, enquanto o homem não possui um quinhão das qualidades que conferem dignidade à humanidade. A uma sociedade baixa, ordinária e humanamente estagnada, ainda não cabe a tão sonhada modernidade. E agora, José?


Sonho de voar


































Só porque é lindo, porque dói de tão lindo e, por último, mas não menos importante, por ser incrível e absurdamente lindo! Ah, e porque o sonho de voar é o denominador comum de todas as vidas, ou ao menos de toda pessoa que já teve cinco anos e quis ir ver o céu azul de perto.

Exposição de fotografias: "Dream of flying", de Jan Von Holleben:
http://www.janvonholleben.com