30 de janeiro de 2007
Sismar, amar...
(Um conto pra você Ismar)
-- Alice Sant´Anna:
"Eu ainda tinha dentes de leite quando fomos apresentados. Não estou exagerando. Ismar, quando aparecia aqui em casa, falava em livros e música e cinema e mais um vasto repertório, aparentando no mínimo trinta anos. Talvez fossem os cabelos, ou o colete de francês em plena Nouvelle Vague: o fato é que Ismar era sinônimo de evento. De escolher tópicos e saia de bolinhas, só pra ver a sua barba se abrindo em sorriso de aprovação.
Cantando de braços dados uma marchinha de carnaval, hoje, percebo como é difícil mudar essa impressão. É que a sua presença não é dessas discretas, camufladas, num canto de sala. Ismar que diz: atente para isso ! e me mostra músicas cheias de violinos e outros instrumentos que só ele é capaz de inventar, num movimento de mãos, olhos e dentes.
A sua arquitetura é para ser estudada. De camisa listrada - ele cabe no seu corpo ? Sentado na cama, à meia-luz do abajur, as paredes com fotografias de filmes em preto e branco e citações de Bandeira a Sartre, Ismar às vezes é só fumaça de cigarro, pairando pelo quarto. Nos tênis, ele escreveu com caligrafia antiga: "um gênio", no esquerdo, "ou uma besta ?", no direito.
Os anjos tortos são sempre mais espertos, e preferem o gauche. Ismar que descarta uma cidade inteira com um levantar de sobrancelhas -- porque o que é feio e de mau gosto, ah que ele comenta ! Mas também, e principalmente, aquele que vibra, que não se contém num solo de trompete ou numa palavra bonita. Num observar de detalhes que parece que engole a gente, porque o menino é, acima de tudo, poeta.
A verdade é que Ismar não existe. É verbo na primeira conjugação, é criação da própria criatura, é personagem tão rico que expande os limites e dá inveja para os outros contadores de história."
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