26 de fevereiro de 2009

Felício

"Como a rua pode ser vazia quando não carrega amor”, pensava a doce Lena, carregando uma sacola, as chaves de casa e alguns pensamentos sobre como já havia movimentado aquela mesma rua quando era menina. “Bobagem!”, despistava a tristeza. Há anos ela repete o mesmo ritual. Todas as manhãs, ela vai até o mercado, e rodopia entre as filas de prateleiras e procura para o marido algo fresco e algo doce, nem sempre nessa mesma ordem. Felício, o marido, só um tanto mais velho do que ela, já não podia convencer as pernas e o corpo todo de que sua curiosidade pelo mundo ainda persistia, e ficava na sala, olhando para a tevê, mastigando qualquer coisa e apertando a bolinha da fisioterapia, entre remédios para a pressão e carinhos do gato. Não tinha doença nenhuma, apenas velhice e um pouco de preguiça. Lena entrou, pendurou as chaves na parede e foi logo preparar o queijo com goiabada para o marido. Da cozinha, ecoavam seus berros - Véio, cafezim? – o gato aparecia, ligeiro, bisbilhotando os cheiros que vinham de sua sacola – Vem ver, Leninha, acho que o gato pegou alguma coisa, ô, gato endiabrado. E a vida se passava morna naquela manhã, entre conversas triviais e sussurros do passado na cabeça de Lena. Os talheres tilintavam na mesa do café: o queijo, a goiabada, o café sem açúcar, o pão de leite com geléia de goiaba, e o gato procurando migalhas do banquete. Terminaram e foram para o quarto – haviam criado o hábito de um café reforçado para poder dispensar o almoço, assim antecipavam a pestana e as palavras cruzadas. Felício estava sentado, apoiado em dois travesseiros muito grandes, tentando ajeitá-los às curvas de suas costas. As palavras cruzadas no colo, a caneta caída no chão – Sai pra lá, gato! – e Leninha ao lado, ensaiando as primeiras palavras. Lembra daquele dia, véio? Fugíamos para nos encontrar atrás da banca de jornais. Felício, sem parecer dar muita atenção, lutava contra sua coluna e contra o gato para pegar a caneta. Era tão fácil ser irresponsável! E você, com toda lábia, me levava para onde quisesse. Lena olhava para o velho, as mãos inábeis segurando a caneta sobre o livro, um amontoado de resquícios do tempo em que era, sim, fácil ser feliz. Num minuto, ela narrou toda a juventude. O quarto enchia-se, nostálgico, do orgulho que ela sentia por carregar tanto bons momentos. Os bailinhos – como éramos cafonas, meu velho - , os porres, os passeios pela rua de madrugada, a capacidade de esquecer do mundo ao redor sem nenhuma culpa. Falou, sem interrupções - nem mesmo do gato, que mastigava, satisfeitíssimo, um pedaço da tampa da caneta -, de todo aquele tempo em que as vontades dominavam as atitudes, espírito do tempo de sua juventude, contracultura repleta de doces transgressões – ah, os meus vinte anos! A vida roubou de nós, véio. Leninha olhou para o lado, ainda sorrindo pelos pormenores que ia lembrando, e, num anticlímax desolador, ele dormia. Tinha os olhos muito juntos, e da boca soltava um fino fiapo de baba. Seu velho, ali, deitado, misto de passado adormecido e hipertricose auricular, ainda guardava a graça de tempos mais leves. Amava-o ainda. Levantou-se, num súbito de amor platônico. Afastou-se na ponta dos pés e, cuidando para não acordá-lo, ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite.

12 de fevereiro de 2009

Rua do Carmo, nº 17.

O poeta Maiakóvski escreveu: “em algum lugar do mundo, acho que no Brasil, existe um homem feliz”. Acho que o encontrei. Atende por Cabral, tem poucos dentes que escaparam de amarelecer, e tinha sono quando o conheci. Usava uma camiseta de tom indeciso entre o cinza e o bege claro, ocupava-se no conserto de um rádio velho e tinha duas rugas especificamente simpáticas no canto dos olhos. Entre os dedos, sossegava um cigarro, que cairia no próximo assovio de Cabral. A tal da felicidade, que ele tinha, poderia culpar muitas coisas. Um pouco da culpa fica, inevitavelmente, para Vivi, sua mulher: toda sorrisos e gentilezas, dessas que deixam o seu palavrão encabulado, e os seu grossos modos com vergonha de se mostrar. Outro tanto para o fato de que é dono de um dos pedacinhos mais interessantes da Bahia: “Cabral-Descobertas” - compra, vende, troca e encanta. Rua do Carmo, nº 17, Pelourinho, Salvador. O lugar, um pequeno beco que dá caminho a um mundo de quinquilharias e miudezas que poderiam ocupar todo o espaço existente, não fosse pela simpatia com que elas te conquistam. Um boneco Smurf, velho como a pólvora, me olhava com ternura, pendurado em um elástico na parede. Do outro lado, uma prateleira que poderia contar sozinha toda a história dos anos 80: brinquedos, fotografias, cartazes, câmeras, rádios, quadros: pequenos pedaços de história. O lugar todo era tomado de coisas; até para respirar, é melhor que se procure um espaço. Espingardas enferrujadas em posição de mira assustavam os mais incautos, ao que a música dos Mutantes devolvia a calmaria. “Você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina”. Não me espantaria se encontrasse tudo isso por ali mesmo, incluindo a Carolina. A cada curiosidade, levantava-se uma forte onda de poeira e mofo, mas até isso, ali, eram só simpatia. Ali, repousava empoeirada toda a coleção de playmobills, enquanto dois meninos reviravam a caixa de fotografias em cima do balcão. Vivi não se importava, ria e contava como adorava a visita de estudantes. “Quem são esses?”, disse o menino apontando para uma das fotografias da caixa. “São pessoas desconhecidas, fotos que foram ficando, ficando, e hoje ninguém mais lembra de quem são”. “Macabro”, afirmou com uma certa ênfase, deixando a velha caixa em paz. E a música complementava o cenário. “Vivemos na melhor cidade da América do Sul, da América do Sul”. "Lalarilalá", cantarolavam alguns.
De volta a Maiakóvski, no fundo, o resto da culpa pela felicidade é, simplesmente, da Bahia. Não há como ser triste na Bahia. Em São Paulo talvez, Minas Gerais, quem sabe, mas não na Bahia. Ameaçando uma pontinha de descontentamento, mude-se: Aracaju com certeza receberia com mais delicadeza o seu penar. Cabral contava já os seus cinquenta-e-poucos anos, mas talvez pela convivência ininterrupta com as velharias, aparentava mais. Seus olhos pendiam para o lado, convergiam com o nariz e formavam uma imagem que lembrava a de um buldogue, desses boa-praça, rabinho sempre abanando. Com Vivi, o contrário: tinha, obviamente, mais idade, mas algo no seu jeito denunciava uma menina de rabo-de-cavalo saindo para o colégio. Tinha o rosto todo dobrado em marcas de expressão, mas isso não enrijecia sua feição, apenas nos fazia imaginar o que ela estava fazendo enquanto o tempo exercia sua função de passar. Adorável Vivi. Entre os dois, o denominador comum: sorriso de não economizar dentes, e uma habilidade de fazer-nos sentir em casa. “Venha, que eu te mostro o resto”, ouvíamos, sem nem reparar de quem vinha. E Cabral falava, mantendo a familiaridade no tom de voz. Falava aos que apareciam por ali, aos montes, como quem fala a um filho mais novo: uma preocupação sutil que alertava dos perigos do mundo, mas que não escondia a vontade de se juntar na aventura.
Havia, por ali, uma calmaria imune à bagunça dos visitantes, indiferente à poeira que levantava a todo instante e fazia tossir um ou outro, ao gato que passou e derrubou uma estátua. Algo no ar que nos lembrava de que já fomos – e, de alguma maneira, ali, ainda éramos – mais ingênuos. Vivi logo interrompeu o silêncio: “...mas vocês encontraram o que vieram procurar na Bahia?” – dizia aquilo carregando na voz tudo o que podia de afeição, e talvez o olhar por ele só, fosse já uma pergunta. Ela não falava em “procurar”, muito menos em “encontrar”, mas todos entendíamos e respondíamos, com surpresas expressões de contentamento, o que também poderia ser compreendido como um Sim.